“Não existe um TripAdvisor para a última viagem”

No Dia de Todos-os-Santos, quando muitos honram a memória dos que morreram, falámos com Rita Mendes, que mergulhou no mundo das funerárias e acaba de publicar um livro sobre isso.

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nuno Ferreira Santos
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Rita Canas Mendes é tradutora e escritora Nuno Ferreira Santos

Quando nos morre alguém, temos pouco tempo para decidir o que fazer e quase sempre a pessoa que morreu não deixou expresso o que desejava para o seu funeral. Como escolher uma agência funerária, o que fazer nestas circunstâncias dolorosas? “Não existe um TripAdvisor para a última viagem”, lamenta Rita Canas Mendes, que ousou abordar um tema em que “quase ninguém gosta de pensar” e mergulhou no mundo secreto da indústria funerária nacional para concluir que praticamente ninguém sabe como esta funciona, à excepção de quem trabalha no sector.

É mesmo assim: quando a morte chega, os vivos ficam muitas vezes sem saber o que fazer face a toda uma panóplia de opções. “A morte continua a ser uma fatalidade, mas num serviço fúnebre quase tudo é opcional. A abundância de escolhas tornou mais complexa a contratação de um funeral. Religioso ou laico? Enterrar ou cremar? Jazigo, campa ou columbário? Urna de que madeira? Qual dos 23 modelos?”, sintetiza Rita Mendes no livro Viver da Morte — A Indústria Funerária em Portugal, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e apresentado há dias em Lisboa. “Não existe um guia com recomendações, cotações, avaliações e escolher uma entre mil funerárias é difícil”, sintetiza a tradutora e escritora.

“Quase sem nos apercebermos, o modo como lidamos com os nossos mortos mudou muito”, recorda a autora, que é licenciada em Filosofia. Antigamente morria-se e velava-se em casa e era a família que preparava o morto. Entretanto, a necrologia dos jornais tem vindo a perder peso, há cada vez mais cremações — representam quase um quinto do total dos funerais no país, e em Lisboa correspondem já a mais de metade —, foram surgindo aplicações de funerárias e até já há sites para anunciar óbitos.

Uma incursão pela Expofunerária 2017 permitiu-lhe perceber que actualmente há muitas opções a considerar, desde caixões com cristais Swarovski embutidos, a outros que abrem em várias direcções e ainda outros com tampas de vidro ou forrados a imitações de pele de leopardo. Há também várias gamas de potes para cinzas, das mais convencionais às mais modernas — como uma urna de cartão que se enterra e serve de substrato a uma árvore e urnas em forma de bola de futebol. Depois, há as campas, as lápides, os livros de condolências. 

Mas o mais desconcertante, diz, foi descobrir que existe uma “bicicleta puxa-caixão” e um site, o infofunerais.pt, que é o mais visitado do sector e soma 13 milhões de visualizações desde 2015, ano em que foi fundado. “É uma espécie de Facebook dos falecidos”, relata. O site permite pesquisar por nome e localidade e ver a página do morto com todas as informações úteis, e inclui até um botão para comprar e enviar flores. E há também o site Até Sempre, onde é possível deixar mensagens de condolências e testemunhos, mais tarde convertíveis em livro. 

Valores “exorbitantes”

Apesar de sombrio à primeira vista, este livro sobre o mundo das agências funerárias não aborrece ninguém de morte. Pelo contrário: as próprias funerárias têm sentido de humor e até uma boa dose de ironia saudável, sublinha a escritora, que encontrou, por exemplo, uma agência chamada Tarzan e outra com o nome Rebimbas. E se a Cá Te Espero entretanto fechou, há outras funerárias que ousaram escapar ao típico padrão de pequena e média empresa familiar e escolheram nomes como Paraíso, Renascer e Bom Caminho.

Mas como é que se vende um serviço que ninguém quer comprar? “As pessoas vão um bocado à sorte e por instinto, não fazem um estudo prévio, escolhem habitualmente a agência mais próxima de casa ou que alguém da família já usou e recomendou”, sintetiza Rita Canas Mendes. Com cerca de 1800 euros, calcula, hoje faz-se um funeral com um pacote básico, que inclui flores, transporte, velório, custo da cremação ou enterro. Mas os funerais são vendidos em pacotes com mais ou menos extras e a factura pode crescer substancialmente.

Há quem chegue a cobrar valores “exorbitantes” e Rita Mendes confessa que ia “caindo para o lado” quando numa sondagem telefónica pela Servilusa — uma multinacional detida por um fundo de investimento que entrou há alguns anos em Portugal e que é hoje a maior empresa a título individual — percebeu que um funeral podia chegar aos cinco, dez ou até perto de 20 mil euros.

A entrada desta multinacional no mercado nacional em finais dos anos 1990, com práticas de marketing mais agressivas, mudou, aliás, as regras. Apesar de ter apenas 6% de quota de mercado, nas grandes cidades este nome é bem conhecido. A Servilusa oferece e está neste momento a publicitar a opção “planos funeral em vida”, com seis pacotes diferentes, dos três mil aos 18 mil euros. Também há uma seguradora que já entrou neste nicho de mercado.

Mas se algumas pessoas são previdentes, a maior parte prefere não pensar na morte. É a “grande fuga”, sintetiza Rita Mendes, que acredita, porém, que a tendência será para se começar a “naturalizar” o tema. No futuro, antecipa, à semelhança do que já acontece em vários países, em Portugal os funerais serão mais personalizados e cada um poderá partir à sua maneira.

A tendência será a simplificação, por motivos ecológicos, práticos ou filosóficos, e a concorrência feita às indústrias lutuosas virá dos próprios consumidores: “Na Nova Zelândia já há quem construa o seu próprio caixão e por todo o mundo há quem não queira deixar a cerimónia na mão de desconhecidos.”

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