Pedro Nunes e as voltas da linha de rumo
O matemático português mostrou que o caminho percorrido pelos navios a rumo constante não é a distância mais curta entre dois pontos na superfície da esfera, mas uma nova e estranha curva que descreve uma espiral até ao pólo.
Em 1558, John Dee, o famoso matemático, cosmógrafo e astrólogo inglês, temia pela sua vida. Envolvido nas convulsões políticas e religiosas de Inglaterra, estivera preso, com problemas de saúde, e o futuro afigurava-se-lhe sombrio. Com grande preocupação pelo destino da sua obra matemática, escreveu ao seu amigo Gerard Mercator, o grande cartógrafo dos Países Baixos.
“E se a minha obra não puder ser concluída em vida, deixo isso ao homem mais erudito e sério que é seguramente o único e maior expoente e suporte das artes matemáticas entre nós, Pedro Nunes, de Alcácer do Sal; e não há muito tempo roguei-lhe insistentemente que se esta obra lhe fosse entregue depois da minha morte, ele benigna e humanamente a adopte e a use como se fosse sua”, disse-lhe.
John Dee era um cosmopolita. No final dos anos 40 e início dos 50 do século XVI, viajara pela Europa, encontrando-se com as maiores luminárias do seu tempo. Em 1548 estudou em Lovaina e em Bruxelas; conheceu Pedro Apiano, trabalhou com Gemma Frísio e ficou amigo pessoal de Gerard Mercator e de Abraham Ortelius. Deu aulas em Paris, onde privou com Pedro Ramus, Orôncio Fineu e os melhores matemáticos parisienses. Em Itália, conheceu Federico Commandino e, em 1552, em Londres, trabalhou com Girolamo Cardano. Mas em 1558, quando temeu seriamente pela sua vida, decidiu que a sua obra científica só poderia ser confiada ao “único e maior expoente e suporte das artes matemáticas”, Pedro Nunes.
John Dee não era o único matemático europeu que, por esses anos, olhava para Nunes como uma das figuras mais destacadas da disciplina. Também o eminente matemático francês Jacques Peletier tentara estabelecer contacto com ele, endereçando-lhe uma carta de grande apreço e elogio. Contudo, a relação de Nunes com Dee viria a assumir uma importância especial, por servir de porta de entrada das suas ideias no círculo de matemáticos e cosmógrafos que preparavam a expansão marítima de Inglaterra.
Qual o motivo para tamanho apreço e reconhecimento científico? O que é que, na obra de Pedro Nunes, atraía tanto a atenção de John Dee, dos cosmógrafos ingleses e dos cartógrafos dos Países Baixos?
Em 1537 Pedro Nunes publicara um livro com resultados surpreendentes, que abriam perspectivas novas acerca da navegação. Discutira, pela primeira vez, as complexas propriedades geométricas das cartas náuticas e fizera propostas matemáticas relacionadas com as navegações de longa distância. Em concreto, mostrou que o trajecto mais curto entre dois pontos à superfície da esfera terrestre – o arco de círculo máximo – era distinto do caminho percorrido pelos navios a rumo constante. Este caminho correspondia a uma nova e estranha curva, que descrevia uma espiral em direcção ao pólo. Nunes chamou-lhe “linha de rumo”, e mais tarde ficaria conhecida por “curva loxodrómica”. Tudo isto tinha potencialmente implicações na cosmografia, na cartografia e na navegação.
A publicação deste trabalho gerou uma polémica científica em Portugal. Um certo, e não identificado, bacharel publicou logo de seguida uma crítica ao texto de Pedro Nunes, a que este se viu na necessidade de responder. Em parte por causa desta discussão, as novas ideias propagaram-se rapidamente para a Europa: em 1541, Mercator construiu um globo onde desenhou pela primeira vez as novas curvas da navegação e, em 1545, Gemma Frísio referia-se já nos seus escritos a essas “linhas de rumo”, havendo indícios de que tinha conhecimento do assunto desde 1540.
Mesmo pessoas com escassos conhecimentos científicos não ficaram indiferentes. Em 1549, o português Diogo de Sá publicou em Paris um opúsculo onde, apesar de mostrar pouca compreensão das ideias de Nunes, prestou o serviço inestimável de traduzir para latim vários excertos da obra que este publicara em português em 1537. Em latim, esses textos chegaram a mãos mais competentes, que rapidamente perceberam o seu alcance. Mesmo vários anos depois, o livro de Pedro Nunes continuava a suscitar grande interesse, tendo sido mandado traduzir para francês com urgência, em 1560, por Jean Nicot, o embaixador francês em Lisboa.
As razões para este interesse não seriam exclusivamente intelectuais. Pedro Nunes insistia em que o excepcional sucesso das navegações portuguesas estava baseado em melhores conhecimentos técnicos e científicos, e os seus próprios trabalhos confirmavam que em Portugal havia um domínio mais profundo da ciência de navegar. Durante toda a segunda metade do século XVI os trabalhos de Nunes foram cuidadosamente escrutinados pelos cosmógrafos e matemáticos de toda a Europa. Em 1569, apenas três anos após a publicação das suas Opera (1566), em Basileia, Gerard Mercator apresentou a sua famosa projecção cartográfica, construída a partir das “linhas de rumo” de Pedro Nunes. E ao terminar o século, em 1599, Edward Wright publicava aquele que foi possivelmente o mais importante livro de navegação de Inglaterra da época, declarando candidamente que a sua primeira parte fora “traduzida, palavra por palavra” do livro de Pedro Nunes.
Historiador de ciência
Este é o último artigo desta série semanal a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação