A combustão cósmica de Basinski num Semibreve que descobre outras estrelas
Na oitava edição do festival, o compositor norte-americano adiantou o seu próximo álbum, os Telectu voltaram renovados e Caterina Barbieri afirmou-se como um dos nomes a seguir na electrónica mais recente.
“Braga reza, o Porto trabalha, Coimbra estuda e Lisboa diverte-se”, é um lugar comum que em 2018 pouco ou nada corresponde à realidade. Deixando as últimas três cidades de fora, centremo-nos na primeira, onde este último fim-de-semana, pela oitava vez, se montou um ritual litúrgico sem santos, sacerdotes ou santíssima trindade.
Na forma, os pouco mais de uma dezena de concertos da oitava edição do Semibreve podem assemelhar-se à prática de uma missa. Não se prega ali o evangelho, mas há silêncio, há um interlocutor que veicula uma mensagem, muitas vezes transcendental, e há (muitos) fiéis - mais uma vez o festival dedicado à vertente mais exploratória de fazer música electrónica esgotou.
Porém, longe das muitas doutrinas apoiadas no Antigo e no Velho Testamento que existem, neste festival não só há vários caminhos para chegar a um lugar, como há também vários fins. De sexta-feira a domingo, do pioneirismo experimental nacional dos renovados Telectu, da electrónica ambiental de Basinski, da pop etérea de Grouper à narrativa intrincada de Caterina Barbieri ou à electrónica pós-apocalíptica de SØS Gunver Ryberg a diversidade estética sonora oferecida neste oásis dentro de um género muito alargado no que toca a propostas e abordagens fez-se representar em espaços icónicos desta cidade - Theatro Circo, GNRation, Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho - para mais uma vez reafirmar que há espaço para eventos de (pequenas) massas, fora dos grandes festivais onde as grandes marcas vão ganhando cada vez mais terreno.
Prova-se também o papel fundamental que as autarquias locais têm ao apoiar este tipo de eventos no salto cultural qualitativo e quantitativo que cidades que noutros tempos se mantinham fora de um circuito underground, que se movia sobretudo por Lisboa ou Porto, deram nos últimos anos. Dois exemplos disso são precisamente Braga e Guimarães, cidade vizinha, que dispõe de uma oferta a nível de equipamentos culturais e de agenda cada vez mais interessante e, ainda que longe das duas principais cidades do país, estabeleceram-se como complementos de sucesso. Estará a faltar a outros concelhos e mesmo a Lisboa e ao Porto a mesma atenção por parte das autarquias para um circuito que se move mais escondido na penumbra, mas que se mantém activo. Aproveitamos para lançar a questão: Onde estás neste mapa, Coimbra?
É fácil de perceber que o Semibreve já derrubou fronteiras e neste momento, como já acontecia nos últimos anos, é um festival internacional, pelo cartaz e por garantir uma fatia considerável do público vindo de outros países.
Um dos motivos para visitar Braga na edição deste ano foi seguramente William Basinski, referência do ambientalismo moderno. Num Theatro Circo onde não cabia mais ninguém apresentou o próximo trabalho a ser lançado no próximo ano, On Time Out of Time.
Há algo de espacial na sonoridade desta nova proposta do norte-americano. De resto, não é nada que ainda não se tenha sentido noutros trabalhos. Porém, há neste um motivo que o justifica. O conceito deste registo captado no centro LIGO, nos Estados Unidos, gira em torno de uma colisão entre dois buracos negros há 1,3 milhões de anos, que gerou uma imensidão energética que terá atingido o nosso planeta em 2015. É essa viagem que Basinski relata, o caminho percorrido por essas ondas gravitacionais até colidirem com a Terra.
Entre as paredes da sala principal do teatro através de um ambiental sombrio e de cadência repetitiva orbitou-se para zonas onde a luz não chega e onde a temperatura está a muitos graus abaixo de zero. Basinski consegue através de uma linha preenchida por loops intermináveis criar algum desconforto a quem esta peça é entregue. Se o objectivo é tornar tangível o evento por trás do conceito de On Time Out of Time então afirmamos que o consegue atingir em pleno.
Esta peça é para ser percepcionada com tempo e com predisposição para uma viagem que pode ser lenta e até dolorosa. É um desconforto viciante que termina com uma espécie de catarse apoiada em sons mais orgânicos que rompem uma linha sonora que serve de fio condutor durante toda a apresentação realizada na penumbra, só quebrada pela mestria do jogo de luzes levado a cabo por Fed Rompante.
Antes da actuação do norte-americano, ao mesmo palco tinham subido os Telectu, nome pioneiro do experimental nacional, com formação renovada, em altura em que acaba de ser reeditado Belzebu, de 1983. A Vítor Rua, co-fundador da dupla com Jorge Lima Barreto, falecido em 2011, juntou-se António Duarte, que dignificou as composições que lhe foram postas em mãos.
Parece estranho que só mais recentemente se tenha começado a perceber o trabalho que os dois músicos iniciaram na década de 1980. Nesta fase, Rua não terá nada a provar, nem esta será uma questão que lhe tire o sono.
Sem os habituais momentos de diálogo com o público que marcam as actuações a solo do músico, premiaram a plateia com uma actuação que recordou o registo de 1983 de forma prestigiante. Por cima de uma base de teclas e sintetizadores, o guitarrista deambulou por repetições de guitarra armazenadas em camadas por uma loop station, criando uma paisagem sonora entre o onírico e harmonias mais complexas. No primeiro dia do festival foram a proposta mais distante de uma noite que se fez em torno sobretudo da electrónica, que continuou até de madrugada no GNRation, numa toada mais dançável com Actress e RP Boo, já depois de uma espécie de filme-concerto sonorizado pela electónica disfuncional de Qasim Naqvi para as imagens algumas vezes a roçar o porno-erótico de Eiichi Yamamoto.
A electrónica de Barbieri
Ao início da tarde de sábado, o Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho recebeu um dos pontos altos da edição deste ano. Caterina Barbieri, que divide a sua morada entre Itália e Berlim, assinou uma actuação arrebatadora no palco montado no centro de um espaço edificado em granito, com vigas de madeira trabalhadas a suportarem o tecto e vitrais furados ao longo de paredes laterais por onde a luz passa.
O último trabalho, Patterns of Consciousness (2017), serviu de guia para um alinhamento dinâmico e surpreendente. Longe do monótono, manipula sons de cordas, de percussão e outros mais orgânicos e tubulares sem que esta pareça uma mescla despropositada. Ora contida, ora em crescendo, vai ameaçando ao longo do set chegar à explosão, que vai sempre adiando. Se em certos momentos roça o techno mais comercial, sem nunca lá chegar, noutros atira-se para um experimental mais exploratório e menos assimilável. Pelo meio desvia-se para coros de vozes com camadas infinitas de tons e cores muito diversas, para voltar a pegar na narrativa que deixou a meio, sempre interligada por interlúdios que entram numa espécie de combustão noise. Completa, diversa e num cenário quase idílico, escreveu o seu nome do quadro de honra do Semibreve.
Num registo mais imersivo, Grouper foi responsável pelo concerto feito nos moldes mais próximos daquilo que pode ser considerado o formato padrão de um alinhamento com canções. Grid of Points (2018) e Ruins (2014) serviram de base para actuação do projecto solo de Liz Harris.
O piano e a guitarra foram a base para linhas de voz encharcadas em delay - imagem de marca da compositora. Sempre muito contida, entre os limites do som etéreo que a caracteriza, serviu de bálsamo para a electrónica mecânica e pós-apocalíptica da dinamarquesa SØS Gunver Ryberg, que já no GNRation proporcionou uma actuação explosiva.