Raymond Kaempfer sobreviveu ao Holocausto em criança e agora combate armas biológicas
Como era judeu, Raymond Kaempfer teve de se esconder dos nazis em sete sítios diferentes. Agora, aos 78 anos, o biólogo molecular que já integrou um grupo de cientistas de elite do Pentágono esteve em Portugal para contar a sua história.
Em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, quando Raymond Kaempfer voltou a ver os seus pais, já não os reconhecia. Tinha cinco anos e era judeu. Por isso, durante três anos esteve escondido em sete lugares diferentes sempre sem os seus pais. A sua mãe escondeu-se noutro sítio e o pai foi enviado para um campo para judeus em trânsito. “Eram estranhos para mim. Já não os via desde os meus dois anos e nem sabia bem o que tinha acontecido comigo”, revelou agora aos 78 anos numa palestra da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, na Caparica. Hoje, continua a lutar pela sobrevivência através da ciência. Mas, desta vez, contra toxinas que podem ser armas biológicas.
A vida de Raymond Kaempfer é feita de contrastes. Talvez por isso nos relate a sua história com voz calma, intervalada por sorrisos rasgados e doces e, por vezes, com silêncios e angústia. Tudo começou ainda antes de nascer. Em 1936, com a ascensão do regime de Adolf Hitler na Alemanha, os seus pais mudaram-se de Berlim para a Holanda. “Como na Primeira Guerra Mundial a Holanda ficou neutra, a esperança era de que, se surgisse uma nova guerra, permanecesse neutra”, recorda.
Nasceu em 1940 e teve logo a sua primeira fuga. Quando, nesse ano, os nazis invadiram a Holanda, a sua família mudou-se para uma casa no meio da floresta e longe da costa, em Beekbergen. “Aí era tratado como um príncipe”, refere, dizendo que vivia com os pais, avó, bisavó e ama.
Foi precisamente em Beekbergen que ainda brincou com Anne Frank, a adolescente alemã e judia que ficou conhecida pelo seu diário. A família de Anne Frank tinha fugido da Alemanha para Amesterdão e era vizinha de familiares de Raymond Kaempfer. A sua prima Susanne Ledermann (mais conhecida por Sanne) – que morreu no campo de concentração de Auschwitz, na Polónia, aos 15 anos – e Anne Frank foram passar um mês de férias de Verão na casa da floresta. No seu diário, Anne Frank caracteriza Sanne Ledermann como uma das suas melhores amigas, com quem conviveu anos, e como era “boa em poesia”.
Raymond Kaempfer diz que só tinha um ano na altura e que não se lembra de Anne Frank. Contudo, a adolescente deixou memórias desse tempo de convívio com ele. Numa carta de 30 de Julho de 1941 escreveu: “Há um pequeno rapaz, de seu nome Raymond. Sanne e eu brincámos com ele o dia todo.” Numa outra carta refere que “Ray está um pouco rabugento hoje mas é adorável”. Além disso, deixou também imagens do “pequeno Ray” no seu álbum de fotografias.
Para fugir aos nazis, Anne Frank e a família acabaram por se esconder num anexo em Amesterdão, mas foram denunciados e enviados para campos de concentração. Anne Frank acabou por morrer em Março de 1945 no campo de Bergen-Belsen (Alemanha) e o corpo foi deitado para valas comuns. O campo foi libertado dois meses depois. “É considerada um símbolo do Holocausto e, de facto, foi uma rapariga infeliz que acabou por morrer. Mas eu sobrevivi e estou aqui para contar a minha história”, anuncia Raymond Kaempfer.
Fugas de bicicleta
Voltando atrás, em 1942, as deportações dos judeus começaram e os pais de Raymond Kaempfer perceberam que tinham de se esconder. Entre Julho de 1942 e Maio de 1945, o pequeno Ray esteve escondido, sem os pais, em sete sítios diferentes. Desses tempos, lembra-se do clima de medo e explica (como soube depois) que a qualquer momento os vizinhos podiam contar aos nazis onde ele estava em troca de dinheiro. “Os nazis eram muito espertos. Disseram a toda a gente que se trouxessem nomes de judeus podiam receber dinheiro. Ora, os holandeses são pessoas que não gostam de gastar dinheiro e os nazis compreenderam muito bem essa mentalidade.”
Contudo, indica que aquilo que o deixava mais em risco eram as suas características físicas. “Na Holanda, as crianças são loiras e têm olhos azuis [características privilegiadas pelos nazis]. Eu tinha cabelo e olhos escuros e não o podia esconder”, nota. “Por isso, era difícil permanecer em qualquer sítio porque não me encaixava e não podia ser visto. Se fosse visto por vizinhos seria perigoso.”
As mudanças de sítio aconteciam – quase sempre – de noite e, em alguns casos, de bicicleta. “Apenas me mudava com a roupa que tinha no corpo e não podia levar nada comigo. Nem podia levar brinquedos. Eu não tinha pertences e, como as crianças cresciam muito rapidamente, muitas vezes as roupas eram curtas.”
Nalguns lugares foi bem tratado, noutros nem tanto. “Começava a observar e tentava sempre encontrar um espaço onde pudesse estar entre as pessoas dessa família, se é que era uma família”, recorda e faz uma ligeira pausa.
No primeiro sítio, em 1943, ficou com Suzy Held, que fazia parte do movimento de resistência holandês e que acabou por ser detida. Mas a sua primeira memória do Holocausto é só do terceiro sítio. Uma antiga ama com cerca de 70 anos estava a cuidar dele sozinha. “Estávamos no cimo das escadas numa casa da Holanda e ela tocou-me na mão para as descermos. Acabou por cair comigo e foi ter lá abaixo.” A ama magoou-se e teve de ir para o hospital. Mas Raymond Kaempfer não podia ir. O que lhe aconteceu?
Acabou por ficar com uma família “muito simpática”. Contudo, como tinha filhos loiros, Raymond Kaempfer não podia passear com eles. “Alguém podia notar que não fazia parte da família.” Mudou-se então para um quinto sítio, o pior de todos. Essa família, ao contrário do que fazia com o se filho, tratava-o mal e ignorava-o. “Chegaram a magoar-me.”
Contudo, logo a seguir, chegou ao melhor de todos os esconderijos. Em 1944, Suzy Held saiu da prisão e levou-o para uma casa no campo perto de um rio. Desse “local longínquo” lembra-se de uma “geleia deliciosa” feita pela família e de ser castigado quando fazia algo mal. Gostava disso, porque, pela primeira vez, sentiu-se importante. “Sabia que estava num bom lugar”, diz com emoção na voz. “Ainda hoje mantenho contacto com essa família [van der Vaart]. Deu-me poder emocional.”
No último lugar onde esteve escondido, já em 1945, encontrou a sua mãe, mas lembra-se dela nervosa (e de não a conhecer). Inicialmente, os seus pais ficaram escondidos no mesmo sítio, mas o pai acabou por ser detido. Foi levado para o campo de Westerbork (na Holanda) para ser depois ser transportado de comboio para Auschwitz. Ao todo, o pai esteve três vezes para ser enviado para lá. “Era um campo longínquo na floresta. Já o visitei e foi deprimente”, conta. Passados três anos, o seu pai foi libertado em Abril de 1945 juntamente com outros 650 sobreviventes.
Depois de tudo isto, Raymond Kaempfer tinha cinco anos e voltou a formar uma família com os pais. Mas não foi fácil: “Não os reconhecia.” Além disso, era uma criança “solitária e misteriosa”. “Não sabia contar o que se tinha passado comigo, porque tinha sido demasiado.” Tudo melhorou quando o seu irmão nasceu em 1946. “Ajudou-me a ‘regressar’ à minha família e a aprender a ter uma estrutura familiar.”
Mulher também sobrevivente
Mais tarde, enquanto estudava biologia molecular na Universidade de Leiden (Holanda), num encontro de uma organização de estudantes, conheceu Miep Kaempfer (que estudava medicina em Amesterdão). Também ela era judia e tinha sido uma criança sobrevivente do Holocausto. Também ela esteve escondida dos nazis numa localidade do Norte da Holanda. “[Embora fosse loira], não podia dizer que era judia em voz alta”, conta-nos agora. Os dois casaram-se em Israel em 1966 e permanecem juntos até hoje. Tanto que Miep Kaempfer acompanhou o marido nesta visita a Portugal.
Depois do casamento, foram para os Estados Unidos, onde Raymond se tornou professor na Universidade de Harvard e fazia investigação sobre a regulação dos genes e o seu impacto no sistema imunitário. Já Miep Kaempfer trabalhava na Faculdade de Medicina de Harvard. Mas não gostavam do estilo de vida norte-americano. “Em Harvard, os professores só se interessavam por si próprios. Não queríamos essa atmosfera”, acrescenta Raymond Kaempfer. Além disso, queriam ajudar na recuperação do povo judeu.
Por isso, em 1974 decidiram – juntamente com os três filhos – ir viver para Jerusalém. “Acreditava que podia fazer o mesmo trabalho de qualidade e que até seria mais significativo porque estava a fazer algo por Israel, que precisava de ser forte na ciência”, diz o biólogo.
Protecção contra toxinas
Um dos seus principais trabalhos é sobre o desenvolvimento de um medicamento contra uma família de toxinas chamada “superantigénios”. Com um sorriso, Raymond Kaempfer diz que não é um estudo complexo. “No fundo, há dois géneros de bactérias (a Staphylococcus e a Streptococcus), que matam as pessoas através de um choque tóxico. Esse choque é provocado por toxinas que a bactéria produz. Essa bactéria pode colonizar a pele, espalhar-se e a pessoa morre [em cerca de dois dias]”, explica.
O biólogo indica que essas toxinas usam uma “resposta imunitária exagerada” das pessoas e que é a resposta inflamatória que provoca a morte. Esta ”tempestade inflamatória” não só é causada por toxinas como também por vírus como o influenza (da gripe) ou o da gripe das aves.
“O Pentágono está muito preocupado com o uso dessas toxinas, que são fáceis de produzir, porque são armas biológicas”, conta. Por isso, contactou-o para saber se o seu laboratório poderia desenvolver protecção contra essas toxinas. De 1998 a 2005, Raymond Kaempfer pertenceu a um grupo de cientistas de elite no Pentágono.
Mais tarde, o seu laboratório na Universidade Hebraica de Jerusalém identificou o mecanismo molecular que leva as toxinas a ter uma resposta imunitária exagerada e desenvolveu moléculas que nos protegem desse choque tóxico. Agora, por exemplo, através da sua empresa Atox Bio na universidade tem uma molécula que já está pronta para a última fase de um ensaio clínico. Para este trabalho, também tem contado com bolsas do governo dos EUA que já vão em 30 milhões de dólares (cerca de 26 milhões de euros). “Houve uma das bolsas que foi a maior dada a um cientista em Israel pelo governo dos EUA”, diz orgulhoso.
Olhando para a sua sobrevivência em criança e a sua investigação actual, Raymond Kaempfer assinala: “É como um círculo vicioso, como fui um sobrevivente agora ajudo os outros. Mas isso só acontece com muito trabalho.” Aliás, esse é um dos conselhos para os estudantes que o escutam na palestra em Portugal intitulada “Sobreviver ao Holocausto: tornar o ódio em esperança”, organizada pela Sociedade Científica ProteoMass.
“Esta é uma lição para levarem para casa de um sobrevivente sortudo. Temos sorte porque criamos essa sorte com muito esforço. Recomendo que trabalhem muito porque é a melhor forma de ficarem satisfeitos com a vida.” Afinal, o biólogo continua a trabalhar todos os dias e não quer ouvir falar na reforma. A ciência tem sido a sua “arma”. “Quando crio algo para nos proteger do vírus influenza, como o poderia fazer sem a ciência?”
No final, um dos estudantes mostra-se curioso quanto ao que Raymond Kaempfer pensa sobre o populismo ou o crescimento da extrema-direita no mundo. “Podemos estar numa situação parecida com aquela em que Hitler surgiu”, responde. “Tudo pode acontecer outra vez e é preciso ter cuidado. Mas a consciência de que pode acontecer outra vez pode fazer-nos resistir.”
Alguém ainda pergunta: e quanto a perdoar o que aconteceu? “Não! Perdoar a morte de milhões de pessoas?! Nunca!” Para perpetuar a memória do Holocausto, Raymond Kaempfer tem levado os netos aos sítios onde esteve escondido – principalmente àquele onde foi mais feliz – e está a escrever um livro sobre a sua sobrevivência. Afinal, se hoje usa muito a bicicleta para ir para o laboratório (ou como passatempo), e não como transporte para um esconderijo, é porque nunca se esqueceu do seu passado e luta por um mundo melhor.