Cat Power: “Sinto-me a levantar voo”
Depois de chegar a ponderar seriamente abandonar a música e retirar-se para um lugar remoto, Cat Power foi socorrida por Lana del Rey. Wanderer, o álbum que sucede a esse período, é da mais simples e pura beleza egoísta. “Não há choque emocional, não há dor neste álbum. Há amor, há uma finalização sem pontas soltas de muita coisa”.
Facto mais ou menos mitificado, a Austrália sempre foi encarada como um destino de fuga para quem, pelas mais variadas razões, deseja subtrair-se do mundo (de um certo mundo, pelo menos) e cavar o seu anonimato. Alguém que resolva enfiar-se numa cidade pouco populosa como Burnie-Wynyard, Taree, Echuca-Moama, Wangaratta ou Yeppoon só com muito esforço da sua parte poderá ser apanhado por qualquer radar mediático – por mais foção ou bem calibrado que este possa ser. Quando, há dois anos, a editora Matador rejeitou o novo álbum de Cat Power, alegadamente argumentando que este não cumpria com os mínimos de apelo comercial exigíveis a uma artista com o percurso de Chan Marshall, a cantora manteve-se na estrada a tocar ao vivo para poder pagar a hipoteca da sua casa e sustentar a vida a dois com o filho que deu à luz em 2015. Mas era um piloto automático que tentava, sem grande sucesso, mascarar o pânico da situação em que se via metida. E foi então que Chan, confessa de imediato na entrevista telefónica com o Ípsilon, começou a pensar seriamente no capítulo seguinte da sua vida. Desaparecer do mapa da indústria musical, mudar-se para a Austrália, para um lugar porventura remoto, escrever um livro e dedicar-se a criar o seu filho foi uma das hipóteses mais consistentes que lhe surgiu.
E pensou nisso com grande seriedade, perguntando-se durante semanas se queria mesmo começar de novo, se conseguiria inventar um novo ponto de partida quando passsou mais de metade da vida a fazer canções e a mostrá-las ao mundo – em variáveis fases de desestabilização emocional. Sim, porque Cat Power nunca foi muito talhada para correr uma cortina entre a sua vida afectiva e a presença em palco, fazendo das suas actuações diálogos vivos e imprevisíveis com tudo quanto lhe ocupasse a vida no exterior. As canções, com ela, nunca foram mera reprodução de material gravado ou registos imutáveis de um determinado período. Por mais problemáticas e instáveis que fossem, as canções eram a sua vida e eram tudo quanto alguma vez tinha sabido fazer.
Chan Marshall tinha pouco mais de 20 anos quando conheceu o director da Matador Records, embora só mais tarde, em 1996, tenha lançado pela editora o seu terceiro álbum What Would the Community Think. A Matador era a casa de Liz Phair e foi ao assegurar algumas primeiras partes da autora de Exile in Guyville – espantoso álbum de Phair que reimagina o clássico dos Rolling Stones Exile on Main St. a partir de um ponto de vista feminista – que Chan conheceu, em 1993, Tim Foljahn (dos Two Dollar Guitar) e Steve Shelley (dos Sonic Youth), os músicos que a acompanharam nos seus dois primeiros álbuns – Dear Sir (1995) e Myra Lee (1996) –, gravados no mesmo dia, em condições muito pouco elaboradas.
Após duas décadas de relação com a Matador, Chan Marshall habituara-se a pensar no pessoal da sua editora como família. E foi por isso que a rejeição do material que tinha composto para o álbum que a partir de agora passamos a conhecer como Wanderer foi como uma facada de um pai na confiança da filha. Era já a segunda vez que esta rejeição acontecia. Já a primeira versão do álbum anterior que Cat Power tinha entregado na editora fora mandada para trás. “Já com o Sun [2012] a minha editora estava a exigir que lhe entregasse um hit record”, confirma a cantora. Ora Marshall nunca foi artista de se demorar muito pelas tabelas de vendas, de acumular milhões de visualizações no YouTube, de voltar para casa com Grammys a saltar-lhe do bolso do casaco.
“Apesar de nunca ter sido esse tipo de artista”, reconhece, “trabalhei imenso para tentar entregar-lhes aquilo que imaginava que eles queriam de mim e com cada estupor de grama de integridade daquilo que seria a minha visão de um disco para eles. Mas foi muito difícil.” O processo tornou-se uma experiência exaustiva, Chan esgotou as suas forças criativas, deitou fora um álbum completo e fechou-se num estúdio, em Paris, à procura de respostas até secar a sua conta bancária. “Depois fiquei bastante doente durante um par de anos – fiquei tão stressada que o meu sistema imunitário colapsou.” Talvez porque o encantador polimento soul de The Greatest prometera uma ascensão a um estrelato que seria difícil de prognosticar à autora da rudeza dos primeiros álbuns; seguramente porque Sun (com a permeabilidade a sonoridades mais “electrónicas”) ascendeu ao top 10 norte-americano, a Matador terá decidido que sabia qual era o caminho que queria para Cat Power.
Só que se Cat Power se mostrara manobrável – ou pelo menos disponível para os satisfazer – por alturas de Sun, a situação agora mudara. Em especial porque em 2014, no regresso de uma digressão que a levara até à África do Sul, descobriu que estava grávida. Na altura, no meio de um turbilhão emocional que envolvia não apenas a pressão da editora, mas também um desconforto crescente com a vida nos Estados Unidos, chegou também a considerar mudar-se para a Cidade do Cabo. O possível destino, na verdade, não era assim tão importante; era talvez mais um sintoma do mal-estar que se aporadava de si em território norte-americano, num clima pré-Trump (Marshall foi uma feroz apoiante de Bernie Sanders nas primárias democratas que deram a vitória a Hillary Clinton). “Muitos antes das eleições presidenciais, ainda antes de engravidar, já me cheirava a esturro quando a polícia começou a ficar militarizada na América”, diz.
Foi então que se aproximou de grupos ligados ao movimento Occupy, convencida de que John Lennon falhara no seu muito optimista vaticínio de que uma canção podia salvar o mundo. “Para que merda ando eu a cantar?”, perguntou-se então. “Para quê quando há jovens negros, miúdos, a serem alvejados no cabrão do meu país sem qualquer razão?! E enquanto isso os meus amigos só queriam levar-me a farmers markets ou a feiras de antiguidades. Eu a pensar que o país estava todo fodido e que se nada daquilo chegava à televisão estávamos com um problema sério nas mãos. E tudo isto estava a consumir-me porque o consenso generalizado era a negação, a ignorância e a recusa de falar sobre o assunto.”
Fada del Rey
O mundo à volta de Chan Marshall não estava com bom aspecto. Tinha um ar medonho, de ameaça iminente, de enorme pressão e pouca ou nenhuma tolerância para qualquer passo menos seguro. Só que a gravidez e a maternidade mudaram tudo. Sobretudo a permeabilidade da cantora ao ascendente da Matador sobre a sua vida – “Não queria que interferissem comigo de forma nenhuma que me pudesse deixar doente de novo ou arriscar a minha situação delicada, estando grávida.” Tendo começado a gravar Wanderer três meses após o parto, o álbum havia de seguir a ideia descomplicada de construção de “um espaço universal, de liberdade individual e de equilíbrio”. Um álbum que era, antes de mais, feito para si e não para responder às expectativas criadas numa folha de excel e nas receitas adequadas ao orçamento anual da editora.
O resultado, como já antes o dissemos, foi rejeitado pela Matador, atirando Cat Power para um período de deriva e incerteza. Durante um ano, ponderou se deveria continuar a investir na continuidade da sua carreira. “Mas também não me importava muito porque era mãe, tinha o meu filho, estava muito feliz e não tinha espaço para me sentir zangada ou perdida”, diz ao Ípsilon. Até que, qual personagem providencial de conto de fadas, a feérica e quase ficcional Lana del Rey surgiu no seu caminho e lhe disse algo como “Chan, you’re fucking amazing”. Claro que não disse apenas isto. Convidou-a ainda para uma digressão conjunta que sarou todas as chagas de insegurança da cantautora. “A Lana lembrou-me dos velhos tempos do indie rock dos anos 90 em que toda a gente estava ao mesmo nível”, diz Marshall. “Todos tocávamos nas mesmas salas, partilhámos os mesmos autocarros na estrada, fazíamos digressões conjuntas, juntávamo-nos no backstage… Isso durou muitos anos e havia um verdadeiro sentido de comunidade. Depois as lojas de discos fecharam, apareceu a Apple Music, tudo mudou, as pessoas envelheceram, morreram, tornaram-se pais, professoras, advogadas, desistiram da música ou ficaram ainda mais estupidamente talentosas do que eram.”
Pode dizer-se que Lana del Rey salvou Cat Power – “Ela veio ter comigo para me oferecer uma rosa quando precisava desesperadamente desse gesto, quando sentia que estava tudo acabado”, reconhece Marshall. E há que apreciar a ironia de ter sido Lana del Rey, com fama (mais ou menos justa) de ser a mais articial figura da pop alternativa actual, a relembrar Marshall de uma verdade da música alheia às obrigações contratuais. Aconteceu que essa digressão de salvação com Lana coincidiu com Wanderer a fazer o seu caminho até às mãos de outras editoras, como a Domino, que tudo fizeram para assinar a artista em situação de abandono. A Domino venceu essa corrida, ainda antes de Cat Power ressuscitar a primeira canção que tinha trabalhado para Wanderer mas que não conseguira finalizar a tempo de entrar na proposta inicial do disco. Talvez porque Woman, na sua voz solitária, soava a “uma canção triste da Cat Power a cantar sobre ser mulher”, diz, enquanto ao juntar a voz de Lana del Rey passou a gozar de uma multidimensionalidade feminina que soltou a canção desse ensimesmamento paredes-meias com a lamúria. E Woman transformou-se num cisne, numa magnífica canção solar, possivelmente o degrau que faltava para elevar Wanderer até um álbum acabado, pacificado e pleno.
Woman não fazia, portanto, parte da primeira versão de Wanderer que convenceu a Domino a apostar em Cat Power. Mas acabou por ser incluída e, talvez com a ajuda da popularidade mais transversal de Lana del Rey, não demorou a atingir uma popularidade expressa nos mais de três milhões de visualizações que o vídeo contabiliza no YouTube. Nova ironia: Wanderer, rejeitado pela Matador, é um hit record pelos padrões actuais na Domino. A pedra de toque: Woman nunca foi submetido à Matador e foi quase uma recompensa atirada para as mãos da Domino por ter acreditado num álbum em que Cat Power engrenava a marcha-atrás, desligava da corrente os sintetizadores e as electrónicas com que se obrigara a criar Sun, e recuperava uma relação descomplicada com as canções.
Chan Marshall ri-se perante a sugestão de que, mesmo de forma acidental, Woman possa funcionar como lição para a Matador, provando que os seus instintos autorais serão, porventura, mais fidedignos do que projecções numéricas. Mas recusa alimentar qualquer discurso de rancor ou ressentimento em relação à sua anterior “família”, nem embarca em qualquer comentário verrinoso ou de vingança consumada. “Quando penso no sucesso deste single”, garante, “não olho para trás e não penso neles – eles desapareceram. Tenho boas memórias do tempo com a Matador, mas não quero pensar nelas, quero avançar com a minha vida, com o meu filho e com os meus amigos.” Ou seja, não está interessada em qualquer forma de sarcasmo ou de ataque verbal à sua editora porque, conforme diz ter aprendido com a anterior editora, a qualquer momento a sua vida pode mudar.
A resposta de Chan Marshall é, aliás, a de quem parece ter lançado todo o seu passado para uma gloriosa fogueira onde vê arder em todo o esplendor medos, ansiedades, remorsos e expectativas que antes equivaliam a um calvário pessoal. O seu tempo verbal, esclarece, passou a ser o presente do indicativo. E não se cansa de agradecer “o amor” que encontrou em fãs e outros artistas como “Florence [Welch], Lana, Neneh Cherry, Patti Smith e Nick Cave”. Wanderer soa, por isso, a conclusão de processo terapêutico, a purga em estádio final, com o passado arrumado em malas propositadamente deixadas fora do porta-bagagens na partida para um novo destino. Mesmo se com Woman, diz Chan, pôde “chegar ao mesmo sítio do qual sabia não ter chegado a partir”.
O voo do falcão
Um falcão instalado no ramo de uma árvore alta, de olhos atentos, derramados sobre um vale ou uma encosta, durante aquele período perfeito da manhã em que o sol acaba de queimar o orvalho que ainda há pouco cobria a vegetação em redor. Talvez o falcão, a esta hora, já se tenha alimentado e queira apenas voar. “Sinto-me assim”, diz Cat Power após oferecer a descrição acima. “Sinto-me a levantar voo e não sinto que haja surpresas. Sinto que é um voo fácil, apoiado, sem peso, equilibrado, que desafia a gravidade. Não há qualquer choque emocional, não há qualquer dor neste álbum. Há amor, há uma finalização sem pontas soltas de muita coisa, há convite, há proclamação. É um grande fogo.” Um grande fogo purificador, acrescentamos.
E que permite a Cat Power fechar a porta que dá acesso ao mundo tumultuoso e conturbado em que vivemos e trancar-se em segurança. Não é apenas o passado que não tem chave para aceder a este Wanderer; é também a América de Trump (ainda que possa ser pressentida em In your face), o desastre ecológico, a ditadura financeira, as lutas pelos recursos primários, os golpes de bastidores, o vómito diário e insuportável de uma miríade de sinais de um apocalipse a que a humanidade se condena. Para Cat Power, Wanderer é um álbum egoísta, de recolhimento pessoal, de sobrevivência íntima, de defesa da sua sanidade física e mental, de construção de uma muralha dentro da qual possa preservar a sua integridade. Se Wanderer sugere uma viagem, essa é uma viagem por lugares sem tempo, com paragem em pequenas povoações, numa deambulação sem rumo e em que interessa a concentração no reduto mais nuclear – de Chan enquanto mulher e enquanto mãe, em que tudo pode ser reduzido a essa micro-escala de dois e em que os males à solta da caixa de Pandora não têm autorização para entrar.
É isso também que justifica um álbum mais alinhado com uma sonoridade folk, blues, country, acústica, guitarras e pianos a bastarem-se como motores para estas onze excelentes canções (Wanderer é a introdução e o encerramento perfeito, In your face é de uma beleza esparsa, aparentada do universo desértico dos Giant Sand, Horizon é uma das canções mais perfeitas e redondas de todo o cancioneiro de Chan, Me voy tem um travo deliciosamente mexicano). Wanderer soa à total despreocupação em espalhar pistas de contemporaneidade – apesar do episódico autotune – por entre os seus versos, ouve-se como um disco imaginado e concretizado com a imprevisibilidade e a espontaneidade da estrada. Como se, mesmo quando Cat Power se atira a uma versão muito pessoal e tocante de Stay (interpretada originalmente por Rihanna), estas fossem ideias recolhidas em viagem e fixadas sem qualquer preparação prévia, como pequenos documentos de final de dia em qualquer poiso de uma noite só.
E é precisamente por aí, por esse recolhimento do mundo, que, afinal, percebemos que Chan Marshall encontrou a sua Austrália. Não enquanto refúgio sólido, com geografia definida e fácil de identificar, mas enquanto lugar abstracto que lhe permite viver em liberdade e fazer aquilo que sempre soube fazer melhor: um punhado de grandes canções.