A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado.
Mesmo com quatros músicos em palco, mesmo com um deles a dar tudo, e bem, no bandoneón, é difícil não centrar o olhar em François Chaignaud. Entra em cena muito suavemente, mas também muito dramaticamente, com um figurino medieval feito à medida, uma face impecavelmente maquilhada, um corpo que tanto poderia ser de homem como de mulher. O bailarino e coreógrafo francês, adepto do transformismo e que tantas vezes põe em confronto, no seu próprio corpo, as suas pesquisas enquanto historiador, é mesmo assim: nunca se sabe como vai aparecer diante de nós, mas é sempre coisa para parar o trânsito.
Em 2016, no Rivoli e com o solo Dumy Moyi, vimo-lo de rabo à mostra a equilibrar pássaros na cabeça, entre outras coisas, enquanto cantava árias ucranianas do século XIX e canções medievais sefarditas, inspirado pelas cerimónias theyyam do Sul da Índia. Esta sexta e sábado no Salão Árabe do Palácio da Bolsa, no âmbito da programação do Teatro Municipal do Porto, vamos vê-lo a encarnar três personagens da mitologia espanhola em Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet criada juntamente com o músico e artista transdisciplinar Nino Laisné.
Este espectáculo resultou de um processo de investigação e criação de quatro anos, focado nas tradições orais, musicais e coreográficas espanholas desde o século XVI. Tudo começou com uma residência em Huesca, onde François Chaignaud e Daniel Zapico, um dos músicos que viria a integrar Romances inciertos, apresentaram um performance. A partir daí, Chaignaud e Laisné viajaram por aldeias de várias regiões de Espanha “à procura de melodias e tradições seculares”. “Também trabalhámos com muitos maestros de flamenco, fandango, jota [dança folclórica espanhola]. Todos estes materiais levaram-nos a fazer Romances inciertos”, contextualiza Nino Laisné. “Esta peça nasceu também da vontade em criar um corpo completo, em que as canções e as danças estão muito próximas. Um corpo que pudesse viajar no tempo e na geografia.”
A solo ou acompanhado – muitas vezes com a coreógrafa Cecilia Bengolea, com quem tem a companhia Vlovajob Pru –, François Chaignaud sempre procurou não só fazer convergir referências e repertórios históricos heterogéneos, dos tempos medievais às danças de rua, como ensaiar diálogos íntimos entre o movimento e o canto – e em Romances inciertos subiu definitivamente a parada. Podemos dizer que está mais cantor do que nunca, e também é seguro dizer que isso lhe sai da pele. “Há uma exigência neste espectáculo que nós não queremos esconder”, afirma o coreógrafo. “Na maior parte do tempo, canto num contexto ‘hostil’, em que o corpo está inquieto e desequilibrado.”
Chaignaud é uma figura saturnina, uma presença magnética e exuberante, mas ao mesmo tempo muito real, muito próxima de nós: há uma vulnerabilidade naquele corpo em autoconstrução, entre a disciplina e a libertação, entre o equilíbrio e o desequilíbrio. Ele gosta de complicar, de implicar os figurinos na própria coreografia, como se fossem um segundo corpo. “Este espectáculo é um belíssimo recreio para pesquisar sobre canto e dança, simultaneamente. Adoro as dificuldades que nele existem, as oportunidades formais e, claro, o poder ficcional.”
“Manas” de séculos passados
Romances inciertos, un autre Orlando desenrola-se em três actos, cada um correspondente a uma personagem. A primeira é Donzela Guerreira, uma jovem mulher que corta os cabelos, disfarça o peito e veste-se com roupas de homem para poder lutar na guerra. Depois é a vez do arcanjo São Miguel, “cujas representações pictóricas apresentam sempre uma certa ambiguidade”, descreve Nino Laisné – nos poemas de García Lorca, esta figura é imbuída de “erotismo e androginia”. Por fim, vemos Chaignaud enquanto Tarara, uma cigana andaluza de coração partido. “Ela aparece na música sefardita antes de se ter tornado numa figura-chave do flamenco. Alguns versos fazem referência à sua provável intersexualidade.”
Há uma androginia e uma desconstrução das normas de género em comum entre estas três personagens, que de alguma forma desestabilizam o lugar do masculino e do feminino, pondo em causa a concepção de género enquanto marcador cultural e social estático. Numa altura em que se começa a falar mais sistematicamente sobre estes assuntos, Nino Laisné considera que olhar para estas figuras “das culturas tradicionais” é uma maneira de nos “lembrar” que as questões de género já andam por cá há séculos. François Chaignaud concorda. “Sinto que a perspectiva histórica do espectáculo permite reenquadrar estas questões de uma forma muito mais ampla. A fluidez de género não é uma coisa recente”, observa, referindo que procura reflectir nos seus trabalhos o seu próprio “processo de identidade”.
Para o coreógrafo, “é muito inspirador” conectar-se com “estas manas dos séculos passados”. “A nível artístico, elas são como fantasmas que visitam os nossos corpos; politicamente, legitimam as negociações de género enquanto processo secular. Impressiona-me o facto de estas figuras serem movidas pela sensualidade e pela intensidade dos seus desejos, que as colocam numa situação de vida precária, mas que ainda assim mostram o caminho para uma acção e agência inspiradoras.” Outra dessas “manas” é Orlando, a personagem marcante de Virginia Woolf, que apesar de não estar na peça, é evocada no título por causa de algumas “semelhanças” entre o romance de Woolf e a forma como o espectáculo está construído. “Os sonos de Orlando, durante os quais muda de identidade de género, poderiam ser aqui os momentos em que eu saio do palco por alguns minutos, que são como décadas e que me permitem reaparecer com uma identidade diferente”, aponta Chaignaud.
Apesar de as questões de género estarem habitualmente presentes nas suas performances, o coreógrafo e bailarino francês diz estar muito mais interessado “na prática de danças e de músicas específicas”. Neste caso, foi beber ao ballet, ao flamenco e ao jota, às danças de corte e às danças com andas. Outro eixo central da coreografia é “os pés, os sapatos, o chão”. Dos saltos altos às andas, aquilo que usa nos pés “determina muitas das (im)possibilidades” do movimento. E isso tem também a ver com as personagens. “Ao colocarem-me constantemente num equilíbrio impossível, estes objectos espelham a procura das personagens, o sentido de risco delas.”
Mesmo que não consigamos tirar os olhos de François Chaignaud – e ele parece que nasceu para isto, para encarnar estas personagens – a verdade é que nem esta Donzela Guerreira, nem este arcanjo São Miguel nem esta Tarara existiriam sem os músicos em palco. “Isto não é um solo com quatro músicos. Os nossos cinco corpos convergem para fazer com que cada figura apareça.”