Brasil: silenciar é mentir
De um lado, um democrata de provas dadas; do outro, um antidemocrata de convicções assumidas. A escolha é simples e é clara.
Com tantas e tão importantes coisas a ocorrerem na Europa, sinto-me impelido a escrever, uma vez mais, sobre o Brasil. Por estes dias, que correm tumultuosos e quase insanos, não é só o destino imediato do seu país que está nas mãos do povo brasileiro. É algo bem mais vasto. Nem sempre é fácil destrinçar a linha, por vezes muito ténue, que separa a civilização da barbárie. O próprio movimento civilizacional engendrou historicamente múltiplas formas de barbárie. Há, porém, ocasiões em que essa demarcação se pode estabelecer com absoluta nitidez. Quando assim é, tudo se torna simultaneamente mais simples e mais dramático. Conhecemos alguns episódios da história europeia, penosamente trágicos, em que facínoras de índole antidemocrática e antiliberal se guindaram ao poder por via do voto popular. Não ignoramos o que daí resultou. É por isso mesmo que, no próximo domingo, os brasileiros terão de fazer uma escolha de consequências verdadeiramente globais. O triunfo de um celerado, cultor da violência, apólogo do liberticídio, da supressão dos direitos humanos, da erradicação do pensamento divergente, repercutir-se-ia muito negativamente por toda a humanidade.
A democracia é o regime da palavra: da palavra dialógica, da palavra como expressão de um conceito, como argumento, como forma de persuasão. É por isso que os debates são tão importantes num regime democrático. A recusa em debater é ao mesmo tempo manifestação de medo e de arrogância. Quem foge aos debates furta-se a um dever elementar da disputa democrática e revela quão impreparado está para o desempenho de qualquer função pública. Não é por acaso que os ditadores fecham os parlamentos, eliminam a imprensa livre e perseguem as vozes discordantes. Ao recusar-se a participar em qualquer debate com o seu adversário, Bolsonaro exibe, de modo absolutamente transparente, a sua verdadeira índole: a de um homem que se recusa a respeitar as regras básicas de um regime democrático.
Nos últimos dias, o candidato de extrema-direita brasileiro não se limitou a fugir à discussão directa e frontal no espaço público, como era seu dever. Fez questão de recordar-nos quem é. Declarou, entre outras coisas, que “os marginais vermelhos serão banidos da pátria”, que “ou saem ou vão para a cadeia”, que Fernando Haddad “vai também, não para fazer uma visita [a Lula], mas para ficar alguns anos”, e que, uma vez que Haddad “gosta tanto dele”, remata, “vão apodrecer os dois na prisão”.
Não é possível ignorar estas afirmações nem fazer de conta que elas verdadeiramente não querem dizer o que dizem. É por demais evidente que a eleição de uma personagem desta natureza significa abrir uma porta para a instalação de um regime de permanente violência, a qual aliás já se tem vindo a manifestar um pouco por todo o país. Um medo difuso percorre a sociedade brasileira.
Perante isto, são incompreensíveis as reservas que algumas personalidades oriundas do espectro político da direita tradicionalmente liberal e democrática continuam a colocar à candidatura de Fernando Haddad. É desde logo inadmissível que se pretenda estabelecer qualquer paralelismo entre a governação do PT e tudo quanto se tem passado na Venezuela. O PT governou o Brasil durante 13 anos, na adesão integral às regras constitucionais, sem interferir na autonomia do poder judiciário, jamais pondo em causa a liberdade de imprensa e garantindo o respeito por todos os princípios constitutivos de um Estado de Direito democrático. Com o PT nunca ocorreu nada de remotamente parecido com o que infelizmente hoje se observa na Venezuela. Tão-pouco as administrações petistas levaram a cabo políticas de estatização económica, de perturbação do normal funcionamento do aparelho produtivo ou de confisco arbitrário da propriedade privada. Só por profunda desonestidade se pode dirigir ao Partido dos Trabalhadores uma crítica dessa ordem.
Também não colhe a tese de que o PT aumentou a conflitualidade política e social no país. Essa já existia há muito tempo, é fruto das inenarráveis desigualdades sociais e económicas, que aliás o PT combateu com algum sucesso. A violência que caracteriza a sociedade brasileira não é o resultado de uma governação que sempre visou promover o reforço da igualdade, da tolerância e da coesão, é antes o inevitável produto dos múltiplos processos de segregação que lamentavelmente continuam a prevalecer no país.
É relativamente ociosa a discussão sobre saber se Bolsonaro preenche ou não integralmente os requisitos necessários para poder ser etiquetado de fascista. São mesmo caricatos alguns exercícios de carácter quase escolástico que visam ilibá-lo desse tipo de suspeita. Para alguns autores, a designação de fascista só pode ser aplicada num contexto de tal pureza e rigidez doutrinária que provavelmente nem ao próprio Mussolini assentaria na perfeição. O fascismo seria assim uma espécie de abstracção teórica, insusceptível de concretização histórica. Deixemo-nos desses pruridos terminológicos pouco sérios. É óbvio que Bolsonaro, pelo que diz e representa, se enquadra na figura de um proto-fascista.
Seja como for, o que estará em causa no próximo domingo é uma disputa que não compreende nenhum tipo de ambiguidade: de um lado, um democrata de provas dadas; do outro, um antidemocrata de convicções assumidas. A escolha é simples e é clara, e perante ela não há meio-termo possível. Como dizia Miguel de Unamuno, “há momentos em que silenciar é mentir”.