O que faz um grupo de judeus no partido de direita radical AfD?
Alternativa para a Alemanha acusada de usar grupo para evitar acusações de anti-semitismo, quando há relatos de "peregrinações“ a locais relacionados com Hitler e poses com caras do antigo ditador nazi.
Quão à direita é o partido Alternativa para a Alemanha? Sabemos que é anti-imigração e anti-islão. E antisemita? O partido soma episódios problemáticos, não só de desvalorização dos crimes do regime nazi mas também de expressão de admiração por alguns membros do grupo mais próximo de Hitler. No meio disto há um episódio que soa bizarro: a fundação de uma ala chamada JAfD – Judeus na AfD.
A organização foi apresentada em Wiesbaden, capital do estado federado do Hesse onde – provavelmente não por acaso – haverá eleições no próximo domingo, e o único estado em que a AfD ainda não tem representação no parlamento local.
Antes da apresentação, há duas semanas, alguns jornalistas especulavam quem faria parte deste grupo: a figura apresentada como principal fundador, Dimitri Schulz, não dava entrevistas, notava a revista Der Spiegel, e na sua biografia apresentava-se como sendo de “uma grande família judaico-cristã”.
Afinal, na votação para liderar o grupo de 19 membros da AfD foi escolhida Vera Kosova, nascida no Uzbequistão, que disputou um lugar pelo círculo eleitoral de Estugarda nas eleições legislativas de 2017. Uma parte significativa dos elementos deste grupo são da antiga União Soviética, disse um porta-voz do partido. A AfD tem cortejado a comunidade russófona, que se informa através dos media russos e tem especial medo de refugiados.
A aproximação de partidos de direita radical islamófoba europeia a Israel não é um fenómeno novo: antes de ser político, o holandês Geert Wilders passou algum tempo em Israel e desde então vê o país como a “última barreira” contra o “perigo do islão”.
Alguns judeus vêem recentes ataques anti-semitas na Europa como obra sobretudo de imigrantes ou refugiados de países árabes ou muçulmanos, e apoiam partidos islamófobos com esta ideia de que há um “inimigo comum”.
Mas a grande maioria dos judeus alemães está noutro campo. No mesmo dia da apresentação do grupo de judeus da AfD, uma manifestação de cerca de 400 pessoas garantia que a comunidade rejeitava o partido: “Não vos vamos dar um selo kosher”, diziam os manifestantes, referido-se à certificação de que certos produtos, alimentares por exemplo, respeitam as regras judaicas.
Todas as organizações que representam judeus na Alemanha uniram-se numa declaração condenando a AfD e a sua nova facção.
"Lobby sionista"
A própria criação do JAfD, que o partido queria que mostrasse a sua diversidade, acabou por ser o seu contrário: duas figuras do partido, Wolfgang Gedeon e Stefan Räpple, não demoraram a criticar a formação desta facção. Gedeon disse que o grupo poderá ser, no melhor dos casos, desnecessário e no pior dos casos “uma organização do lobby sionista que contraria os interesses da Alemanha e dos alemães”. Em declarações ao diário Die Welt, Räpple apoiou as declarações do colega.
Em resposta, a co-dirigente da AfD, Alice Weidel, disse que “é altura dele [Gedeon] sair finalmente do partido”. Já houve uma tentativa para o expulsar por anteriores declarações anti-semitas, como chamar "dissidenets" aos negacionistas do Holocausto e a afirmação de que o “judaísmo do Talmude” é o “inimigo interno da cristandade ocidental”.
Porém, até ao momento, não há notícias sobre a saída de Gedeon da AfD, que continua ocupada com as cada vez maiores suspeitas sobre a admiração que alguns dos seus membros têm por Hitler. Na semana passada, houve um primeiro caso, relativo a Jessica Biessman, representante da AfD no conselho municipal de Berlim.
Imagens de Biessman na cozinha, que publicou na rede social MySpace há uma década, voltaram a aparecer. O problema: numa prateleira estão visíveis garrafas de vinho com imagens de Adolf Hitler nos rótulos. Biessman disse não ter reparado nas garrafas (que são vendidas através de um site italiano; por ter a imagem de Hitler a sua venda é proibida na Alemanha), mas enfrenta a possibilidade de expulsão do partido.
Peregrinação à casa de Hitler
Ao mesmo tempo, surgiram notícias de uma recente “peregrinação” de representantes da AfD a vários locais associados ao nazismo, incluindo Braunau am Inn, a cidade austríaca onde nasceu o líder nazi. Segundo o jornal Thüringer Allgemeine, um alto responsável do partido, que não foi nomeado (os suspeitos de crimes não são identificados pela imprensa alemã), estaria em imagens com uma vela à porta da casa onde nasceu Hitler, e com suásticas noutros locais da “peregrinação”, feita há três anos.
A AfD reconheceu saber da existência das imagens e garantiu que mal teve conhecimento do sucedido o responsável foi “imediatamente expulso”. Mas segundo a imprensa, este responsável terá estado num painel que analisou, em Maio, o caso do controverso Björn Höcke, uma das figuras mais radicais da AfD, para avaliar da sua continuação no partido depois de este ter criticado a política de memória alemã e o monumento alusivo ao Holocausto em Berlim. Höcke continuou no partido.
E não é só Höcke que tem tido declarações problemáticas: um dos co-líderes da AfD, Alexander Gauland, já disse que os alemães “deviam poder estar orgulhosos das acções dos soldados da Wehrmacht” (o exército regular, que foi também responsável por crimes de guerra) e desvalorizou o nazismo e o Holocausto como “uma caganita de pássaro” na História da Alemanha.
Por tudo isto, a presença do grupo dos judeus na AfD “não é nenhuma prova da ausência de anti-semitismo” no partido, dizia à revista Der Spiegel a antiga presidente do Conselho Central dos Judeus, Charlotte Knobloch.
Muitos outros lembram paralelos entre o anti-islamismo de agora e o anti-semitismo dos anos que antecederam o Holocausto. Basta fazer uma visita guiada ao Museu Judaico em Berlim e o próprio guia da exposição apontará algumas semelhanças. A jornalista da Spiegel que tem seguido a AfD, Melanie Amann, sublinha o mesmo em declarações à rádio norte-americana NPR: “Muitos líderes da AfD usam acusações generalizadas em relação aos muçulmanos que podem ser comparadas ao modo como os nazis tratavam os judeus – por exemplo, como 'inimigos do povo alemão'. Também usam linguagem comparando os muçulmanos a animais, por exemplo, bactérias”.
Um cliente do restaurante Feinberg’s, em Berlim (cujo dono tem denunciado inúmeras mensagens anti-semitas e ameaças que recebe por carta, emails e telefonemas; há quem telefone a marcar mesa para “comer judeus mortos”), diz que o sentimento anti-judeus está mais visível desde as eleições do ano passado e do resultado da AfD. Por outro lado, há quem sublinhe o anti-semitismo de alguns refugiados chegados em 2015: um ataque a um judeu de kippa num bairro de Berlim que foi levado a cabo por um refugiado sírio sublinhou esta percepção.
Mike Samuel Delberg, representante da Comunidade Judaica e da comunidade desportiva Maccabi, nota que o “anti-semitismo não é um problema apenas de grupos de extrema-direita, mas também de grupos muçulmanos, e outros grupos religiosos ou sociais”, declarou ao jornal Ha’aretz, de Telavive.
“É muito perigoso para estes judeus juntarem-se à AfD, porque não podemos trabalhar com racistas anti-semitas para resolver outros problemas de anti-semitismo”, sublinhou. “Uma alternativa melhor seria construir alianças com outras minorias religiosas e atacar os problemas a partir do interior das comunidades.”
Laura Cazés, vice presidente da União Europeia de Estudantes Judeus, disse ao Ha'aretz que não é possível ignorar os cartazes da AfD que pedem coisas como "escolas livres de islão” na Baviera, na campanha para as recentes eleições no estado federado. “Como judeus temos de nos perguntar: de que tradição vem esta exigência? E quando as escolas estiverem livres de islão, qual será o próximo grupo a ser apagado?”