As muitas facetas da arte de amar
Chegada de Marselha, a exposição Quel Amour!? abriu no Museu Colecção Berardo, em Lisboa. Amor, paixão, enamoramento, mas também inveja e ciúme, a exposição dá-nos a ver estas e outras formas de tratar este tema universal.
Eric Corne, o curador da exposição, conta que ela estava a ser montada no dia em que Helena Almeida (1934-2018) morreu. Por coincidência, algumas das obras desta artista tinham sido escolhidas para uma das entradas na exposição. Além disso, Helena Almeida integrara também já a montagem do Musée d’Art Moderne de Marseille, a primeira instituição onde Quel Amour!? foi mostrada, entre Maio e Setembro deste ano. Uma das suas peças foi mesmo escolhida para tema da imagem da exposição: a fotografia de um estranho bailado onde a artista e o marido andam juntos, com dificuldade e as pernas unidas por um cabo grosso de plástico.
Em Lisboa, nas duas grandes salas paralelas do piso zero do Museu Colecção Berardo, bem como noutras duas no andar de baixo, encontramos dezenas de obras de outros tantos artistas sobre este tema vastíssimo que é sem dúvida o mais importante na vida de cada um de nós. Eric Corne, segundo nos conta, não quis realizar uma abordagem diacrónica e historicista, nem, por outro lado, anedótica: quando lhe perguntamos porque é que a exposição não mostra, por exemplo, uma peça que seja de Picasso, ele que representou sempre o amor como desejo predatório, quase animal , apenas nos responde que “não quis muito ir por aí”; e que preferiu levantar questões, suscitar aproximações surpreendentes, mostrar, enfim, o que só raramente se vê do que desenvolver uma tese ou criar núcleos bem delimitados de obras definidas por critérios cronológicos ou estilísticos. O tom está dado. Não vamos aqui ter, de todo, telenovelas com final feliz ou o sentimentalismo delico-doce com que a sociedade de consumo em que vivemos nos quer vender este tema.
Eric Corne, ao invés, vai buscar O Banquete de Platão, entre outras referências maiores sobre o tema — citemos, numa primeira leitura dos textos do catálogo, Kerouac, Benjamin, Marsilio Ficino, Ronsard e Jodelle, Roland Barthes e Lacan —, e retoma o ensinamento da sábia Diotima sobre o amor: “Já que o amor ensina todas as artes, sigamo-lo como a um mestre.” Diotima referia-se a Ágape tanto como a Eros, ao amor espiritual como ao amor erótico. Em ambos, destacava o estabelecimento de uma ligação, de uma conexão entre dois seres. É por aqui que chegamos de novo a Helena Almeida e aos critérios do curador para a exposição.
De facto, logo na primeira sala, o núcleo de peças assinadas por esta artista é provavelmente o maior de toda a exposição, se exceptuarmos as montagens de desenhos e fotografias de pequeno formato de outros artistas, como Gonçalo Pena ou Mattia Denisse. Na artista portuguesa, Corne quis destacar sobretudo o trabalho em conjunto com o marido, tanto na imagem que já referimos, de 2011, como na generalidade da sua obra, já que foi este, Artur Rosa, quem sempre a fotografou. Um excelente contraponto a estas imagens são as provas de contacto de Ernesto de Sousa, mostradas um pouco mais adiante na montagem, onde o corpo da mulher amada é exaustivamente fotografado, uma obra que recebeu o nome de Revolution my body. Ou ainda, num registo mais mediático, Marina Abramovic e Ulay, percorrendo aqui, em vídeo, a muralha da China a partir de extremidades opostas no espaço.
Mas Helena Almeida não é a única entrada para a exposição. Na realidade, há duas possibilidades de a percorrer, consoante se escolhe um dos dois corredores paralelos do piso zero do edifício. Num vestíbulo que os precede passa-se um filme de William Kentridge onde um personagem principal olha melancolicamente a lua, ao passo que uma figura feminina nua, que evoca a imagem de todas as Vénus jamais representadas, o abraça. Nesse mesmo espaço, sobre uma mesa, há uma colecção de cartas de amor de escritores famosos, e um pouco mais longe um dos lençóis bordados de Lourdes Castro com a silhueta de um casal deitado. É uma excelente forma de introduzir a exposição, já com uma abertura de sentidos que confirma aquilo que o curador desejava que o espectador experimentasse.
A partir daqui, encontramos inúmeras surpresas, obras e autores que, nos achados da montagem, permitem leituras complexas que vão dos fantasmas à dor: Pierre Klossowski, por exemplo, ou Francis Bacon e David Hockney, esses mestres na representação da solidão e da ausência dos corpos em dissolução, mas também Anette Messager, que tem uma obra de parede construída com materiais têxteis e intitulada Jalousie/Love (ciúme/amor); ou Albuquerque Mendes que se representa como crucificado, ou mesmo Paula Rego. Outras tratam da complexidade da relação com o próprio corpo, do amor de si – Kiki Smith, Ana Mendietta ou Francesca Woodman, entre outros artistas; ou mesmo, como hoje é já obrigatório, na inclusão de discursos que entretecem o afecto com as questões de género ou orientação sexual. Nan Goldin é decerto um dos exemplos mais fortes sob este ponto de vista, cuja obra continua a dar-se a ver obrigando-nos a nós, espectadores, a assumirmos a nossa condição de voyeur. Mas também a iraniana Shrin Neshat, de quem se pode ver o duplo vídeo Turbulent, de 1998.
Três vestidos de noiva
Há três vestidos de noiva nesta exposição. O primeiro, tradicional numa fotografia clássica de um casamento nas escadarias de uma igreja, integra uma daquelas narrativas de Sophie Calle em que a ausência é o grande tema: tratar-se-á, ao que a artista dizia, de uma encenação sem noivo, apenas feita por vontade de usar esse símbolo da condição da mulher que o vestido de noiva representa.
O segundo, construído com materiais heteróclitos – entre os quais muitos bonecos minúsculos, quais “filhos” da noiva que aqui está – é a escultura de Nikki de Saint-Phalle, muito próxima da arte pop, que integra a Colecção Berardo.
E finalmente o terceiro, que não é propriamente um vestido de noiva mas tão só duas túnicas brancas, é usado pela dupla de artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, numa fotografia em que surgem caracterizados como palhaços e usando grinalda de flores. Ou seja, dito de outra forma, nenhuma destas três peças materializa aqui a celebração do amor romântico que o dia do casamento supostamente significa na sociedade ocidental moderna. Essa tarefa deixa-a Eric Corne para um casal gay que se faz pintar sentado num sofá, de rosto tapado por um lençol, como se de fantasmas se tratasse.
No andar inferior, para além da escultura de Saint-Phalle e de dois grandes desenhos de Paula Rego, celebra-se a fugacidade, com a convocação de imagens realistas do erotismo (Fromanger e John de Andrea) que se conjugam com as magníficas esculturas de rostos fragmentados (incompletos?) do holandês Mark Manders, naquela que será provavelmente a primeira apresentação da obra deste artista em Portugal. Finalmente, aquele amor que não era referido até aqui, também surge na exposição: trata-se do amor pela arte, pela pintura, na espessura matérica de Monticelli, um artista do século XIX que era o preferido de Van Gogh. Foi por causa dele, da sua obra quase informal, que este pintor se instalou em Arles e que aí criou uma parte importantíssima da sua obra.