Exorcismos

Estou infiltrado num grupo de apoio ao Bolsonaro no WhatsApp. Escrutinei tudo o que fui lendo: 99% das notícias partilhadas são absurdamente falsas.

Rosa, Edgar, Renée e Mira são os nomes da minha avó, do meu pai, da minha companheira e da minha filha. Todos brasileiros, nascidos em São Paulo. Neste cerco de afectos e memórias gravitam também os espíritos da bisavó Fanny, do tio Isaac, e dos outros Feldman que fugiram da Polónia para o Brasil nas décadas de 20 e 30, escapando ao Holocausto. Entre os que ficaram para trás, não restou um único sobrevivente. Apenas uma escuridão brutal.

Nos últimos anos mergulhei finalmente no Brasil. Mas São Paulo ficou para mais tarde. Na Terra Indígena do povo Krahô — concretamente na aldeia Pedra Branca, onde a Renée passou longas temporadas nos últimos dez anos — ganhei um novo nome, uma nova família e uma outra teia, também ela formada por sobreviventes de um genocídio, possivelmente o maior da História: o dos povos originários. Conheci a maior área contínua do Cerrado (um dos biomas mais ameaçados do mundo) e a língua dos Krahô, que é uma das cerca de 300 línguas faladas no país. E fiz amigos para a vida. Indígenas e indigenistas.

Em S. Paulo, fui incorporado na complexa maquinaria instuticional brasileira: cidadão, pessoa física, pessoa jurídica, reservista do Exército. E finalmente, eleitor. Mas hoje, a caminho do segundo turno, o direito ao voto parece uma migalha diante da sombra do Fascismo que se agiganta. Propaga-se o ódio, o racismo, a violência.

Na noite do primeiro turno, em casa de amigos, vimos na televisão os resultados que deram uma primeira vitória a Bolsonaro. As sondagens previam este cenário, mas quando a bomba explodiu percebemos que o impacto era muito mais violento. Houve lágrimas e desespero. Recebemos e fizemos telefonemas a amigos e familiares para saber se todos estavam bem, como se a Terra tivesse tremido. Nessa noite, o medo começou a instalar-se nas rotinas, nas casas, e dentro de cada um de nós, como um sintoma de uma tragédia iminente.

Nos dias seguintes, a violência irradiou. O assassinato do capoeirista Moa do Katendê e a tortura da rapariga que teve a barriga cortada com o desenho de uma suástica foram casos mediáticos. Mas entretanto fico a saber de mais histórias, incluindo a de amigos e conhecidos, que têm sofrido insultos e agressões nas ruas, principalmente homossexuais e mulheres. Não restam dúvidas: entrámos num estado de excepção.

A 10 de Outubro, a Frente Povo Sem Medo convocou uma manifestação em S. Paulo. Eu e a Renée conversámos sobre levar ou não a nossa filha de nove meses. E sobre a importância de não ceder à chantagem da violência latente. Se o dia das eleições foi tudo menos a “festa da Democracia”, esta manifestação seria um acto afirmativo, ligado a uma luta ampla para que os direitos sociais, a paz e a justiça fossem resgatados. Acabámos por ir sozinhos. É válido deslocar a discussão para o campo da oposição entre temor e coragem — apesar de não termos visto outras crianças na manifestação. A conclusão, ao sairmos de casa, é que a prática da autocoerção significa já uma adesão involuntária ao regime do terror, às suas regras e à sua lei moral.

Criam-se novos códigos, e novos gestos. Um punho erguido e um sorriso para uma rapariga que passa com uma t-shirt onde se lê “Lute como uma garota!” ou um olhar cúmplice para um rapaz com uma t-shirt vermelha do Tom Jobim. Para um homem branco, hetero, não-periférico, resta ainda uma sensação de segurança ancorada na carapaça simbólica ou escudo de privilégios, que me tira automaticamente da linha da frente. Mesmo assim, tenho cuidado, e é provável que já estejamos a ensaiar os corpos para um novo estado de alerta.

A campanha de Bolsonaro, totalmente ancorada em grupos autónomos de WhatsApp, foi eficaz ao formar uma massa de fanáticos que aderiu a um regime de violência e constante policiamento a todas formas de diferença e alteridade. O povo da periferia, os negros, as mulheres, os LGBTQ, e principalmente os indígenas têm todas as armas apontadas aos seus corpos. Mas é nesta multidão tão diversa e heterogénea que reside a maior força de bloqueio e a potência das belíssimas transformações que estão por vir. Não deixa de ser entusiasmante ver o grau de politização da juventude brasileira, que nos últimos anos reaprendeu a fazer política nas escolas, nas universidades, nos bairros, nos movimentos sociais (e já agora: como é desanimador o contraste com o sistema de implementação de obediência cega, humilhação e esterilização do espírito crítico ao qual tantos universitários portugueses aderem através das praxes académicas).

Estou infiltrado num grupo de apoio ao Bolsonaro no WhatsApp. Em silêncio, para não ser expulso nem ameaçado. Escrutinei tudo o que fui lendo: 99% das notícias partilhadas são absurdamente falsas. O resto é discurso de ódio, apologia da violência, raiva irracional e fanatismo religioso. Há dias, um dos membros publicou uma frase sábia. Não sei onde está a ranhura por onde um outro discurso, uma emoção, ou um pouco de empatia possa entrar. Mas o caminho não passa pela ideologia, muito menos pela teologia e menos ainda pela política. Temos que pensar no significado das palavras deste eleitor do Bolsonaro: “Isto não é uma eleição, é um exorcismo.” E agora?

João Salaviza é cineasta. O seu novo filme, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, realizado com Renée  Messora, foi rodado com os índios Krahô

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