Pequim diz que os “campos de reeducação” de muçulmanos lhes torna "a vida mais colorida"
Continuando a alimentar a narrativa de "combate ao terrorismo" em Xinjiang, onde a população muçulmana é alvo de escrutínuo, restrições culturais e violações de direitos humanos há décadas, o líder da província, Shohrat Zakir, pinta uma imagem “colorida” do “sucesso” dos "campos de reeducação" na região.
Face ao escrutínio e às críticas internacionais após a revelação de que mais de um milhão de muçulmanos estão detidos ilegalmente em “campos de reeducação” em condições precárias, o chefe da província chinesa de Xinjiang, Shohrat Zakir, descreveu o “uso vocacional” das instituições, em entrevista à agência governamental Xinhua.
Segundo Zakir, os “campos de reeducação” para muçulmanos, integrados na “campanha de doutrinação” da minoria religiosa - constituída, em grande parte, pelos uigures, uma minoria étnica turcófona da China -, em vigor na região desde 2014, tem provado ser uma medida “eficaz no combate ao terrorismo”.
Nos “internatos”, como Zakir lhes chama, Xinjiang promove um programa de “educação vocacional e de treino, de acordo com a lei”, cujo objectivo é “erradicar o solo onde cresce o terrorismo e o extremismo religioso”, diz. Deste modo, a pequena província chinesa combina “castigos com leniência” e apela à “reabilitação dos cidadãos, de acordo com as leis relevantes”. As instituições de treino vocacional – legalizadas no dia 10 de Outubro -, “concedem também especial atenção à saúde mental dos formandos”, proporcionando acompanhamento psicológico quando necessário.
O Governo chinês, que negava a existência dos “campos de reeducação”, mas admitia que alguns criminosos tinham sido detidos “para terem futuras oportunidades de emprego”, revelou em Setembro estar a tentar “evitar os mesmos problemas da Europa” – que para os chineses falhou no combate ao terrorismo.
Desde um surto de violência em 2009, no qual uma manifestação que se descontrolou se traduziu na morte de pelo menos 197 uigures e chineses han – a maioria étnica na China -, na sequência de um ataque aleatório com bastões, facas e pedras na capital de Xinjiang, que as restrições na vida da população aumentaram. A partir daí, os uigures foram considerados culpados de vários ataques terroristas na região e por toda a China, onde paira o sentimento de instabilidade e desconfiança quanto à etnia.
A narrativa de “combate ao terrorismo” tem servido como justificação ao escrutínio e às restrições aplicadas aos muçulmanos de Xinjiang, que são vigiados por câmaras de segurança e por forças policiais armadas, e são impedidos de sair da região. Em 2017, Pequim introduziu novas restrições quanto ao uso de véus, roupas associadas ao islão e barbas “anormalmente longas”, que segundo o regime podem “gerar sentimentos de fanatismo religioso”.
A nova legislação, para além de “legalizar” os “campos de reeducação”, recorda que utilizar o conceito de halal - que se refere ao respeito de vários preceitos islâmicos – a produtos ou comportamentos que não a alimentação, recusar ver a televisão estatal e ouvir a rádio chinesa, bem como proibir as crianças de frequentar o ensino público chinês são exemplos de infracções que podem levar a detenções.
Na extensa entrevista, Zakir conta que os “formandos aprendem mandarim, questões legais e competências vocacionais”, que se juntam ao objectivo principal: uma doutrinação anti-extremista que visa “a obtenção de emprego”. No final da “formação”, são emitidos “certificados de conclusão”, diz.
Na cafetaria são preparadas “refeições nutritivas e variadas”, os dormitórios estão equipados com “casas de banho e chuveiros”, e entretenimento é algo que não falta nos “campos de reeducação”: os “formandos” têm acesso a “rádio, TV, ar condicionado”, campos desportivos, salas de leitura, de informática e de cinema, bem como “pequenos auditórios interiores e exteriores”, garante Zakir à Xinhua.
“Muitos formandos antes afectados pelo pensamento extremista e que nunca tinham participado em actividades desportivas ou artísticas não se tinham apercebido de que a vida podia ser tão colorida”, reforça, sem nunca especificar se a permanência dos “formandos” nas instituições vocacionais é forçada, nem o número de pessoas “em formação”.
“O governo salvou-me”
Segundo Zakir, a maioria dos “formandos” consegue “reflectir nos seus erros e encarar claramente a essência e o mal do terrorismo e do extremismo religioso” durante a sua estadia nos “internatos”. Ao longo da entrevista são apresentados relatos de antigos “formandos” com boas experiências para partilhar, sendo que desde o lançamento da campanha que o seu trabalho é “reconhecido e apoiado de forma leal por todos os grupos étnicos em Xinjiang”, diz.
Sem nomes, pode ler-se que, no caso de um indivíduo, a intervenção do governo o “salvou”: “Eu não sabia a língua comum, nem as leis. Nem sabia que tinha cometido erros. Mas o governo não desistiu de mim; ajudou-me e salvou-me activamente, dando-me comida grátis, alojamento e educação. Fiz grandes progressos e estimarei esta oportunidade de me tornar um membro útil para o país e para a sociedade”.
Outro indivíduo conta que o seu salário aumentou significativamente pela prática de competências vocacionais, e é agora “um orgulho” para a família: “Posso andar de cabeça erguida e ser elogiado pelo meus anciãos. A minha esposa tornou-se mais atenciosa. Os meus filhos estão orgulhosos de mim. Recuperei o respeito e a minha confiança”.
Desde os anos de 1990 que Xinjiang sofre na mira de “três forças do mal”, garante Zakir: o terrorismo, o extremismo e o separatismo. “As pessoas sentem-se mais seguras, e temos uma boa fundação para combater os problemas enraizados que afectam a estabilidade da região”, disse.
Indignação internacional
A entrevista de Zakir surge na sequência da onda de indignação a nível internacional face à revelação das detenções arbitrárias em “campos de reeducação”, do controlo sistemático da vida quotidiana dos cidadãos e do consequente abuso dos seus direitos fundamentais à liberdade de expressão, religião, privacidade, protecção contra qualquer forma de tortura e julgamentos injustos, que aumentaram de forma exponencial em 2016, quando Chen Quanguo, secretário de Estado do Partido Comunista, assumiu a liderança da região.
Grupos que lutam pelos direitos humanos garantem que os muçulmanos em Xinjiang estão a ser detidos sem acusação formada, por infracções como recusar dar uma amostra de ADN, não falar mandarim e discutir com a polícia. A organização Human Rights Watch publicou esta terça-feira um artigo no qual apela à “libertação de crianças em orfanatos”, cujos pais foram detidos de forma arbitrária nos “campos de reeducação”.
“As justificações do governo chinês não funcionarão para conter as críticas, a não ser que fechem os campos e libertem todos os detidos. Estes campos continuam ilegais e arbitrários tanto sob a legislação chinesa, como internacional; o sofrimento de um milhão de pessoas não pode ser apagado com propaganda”, reagiu no Twitter a investigadora da Human Rights Watch, Maya Wang.
“As autoridades de Xinjiang estão a sentir a pressão – a condenação internacional está a funcionar. Precisamos que os governos internacionais tomem uma posição, como impor sanções às autoridades de topo”, apelou ainda a investigadora.
A mais recente declaração foi feita pela embaixadora norte-americana na ONU, Nikki Haley, que condenou a situação na região e disse que é saída “directamente de um livro de George Orwell”. Num discurso perante os ministros da Defesa, na segunda-feira, Haley acusou Pequim de “criar o mesmo extremismo que eles próprios afirmam estar a tentar erradicar”.
Em Setembro, os Estados Unidos admitiram avançar com sanções económicas à China, depois da publicação do relatório da Human Rights Watch, que apresentava detalhes das violações de direitos humanos a que os muçulmanos de Xinjiang estão sujeitos. No relatório anual da Comissão Executiva para a China do Congresso dos EUA, publicado no dia 10 de Outubro, o grupo bipartidário exigiu ao Presidente Donald Trump que os “campos de reeducação” fossem encerrados e recomendou a aplicação de sanções ao chefe do governo de Xinjiang, Chen Quanguo. Sugeriu também o cessar de relações económicas e comerciais entre os EUA e Xinjiang.
Também a União Europeia diz estar a “seguir de perto a situação em Xinjiang”. Numa reunião do Parlamento Europeu, a vice-presidente Federica Mogherini afirmou que a instituição está “extremamente preocupada face a relatos credíveis que apontam para a deterioração dos direitos humanos na região”.