Serralves: o estranho caso do director artístico que se teria autodestruído
No dia em que João Ribas e a administração de Serralves vão ser ouvidos pela Comissão de Cultura do Parlamento, seria de esperar que víssemos finalmente esclarecido o que ao certo se passou nos dias que antecederam a inauguração da exposição de Robert Mapplethorpe. Mas não é nada certo que isso aconteça.
Escolhido por Suzanne Cotter para ser o seu braço-direito na direcção artística do Museu de Serralves, João Ribas chegou a Portugal em 2014 com um currículo essencialmente construído nos Estados Unidos e que se pode considerar invulgar para um curador e crítico na casa dos trinta anos. Passou por instituições de inequívoco prestígio, viu vários dos seus projectos curatoriais receberem prémios importantes, tem um trabalho ensaístico e crítico de reconhecida relevância.
É “um curador distinguido internacionalmente pela originalidade das suas exposições e pelo seu profundo compromisso com os artistas e o pensamento”, disse Cotter quando este aceitou o convite para vir trabalhar com ela no Porto. E quando a curadora australiana decidiu que dirigir o Mudam, no Luxemburgo, poderia ser mais aliciante do que permanecer em Serralves, e Ribas se candidatou ao lugar e venceu o concurso internacional lançado para o efeito, a presidente da Fundação de Serralves, Ana Pinho, que integrava o júri, descreveu assim a sua prestação: “Destacou-se completamente, em especial pela sua entusiasmante, estruturada e fresca visão da programação artística e do que deve ser Serralves”.
Terá sido, presume-se, no uso dessa visão e dessas reconhecidas qualidades que Ribas programou a exposição Robert Mapplethorpe: Pictures. Na tardia conferência de imprensa que a administração de Serralves convocou a 26 de Setembro para reagir à demissão do director-artístico, que fora tornada pública cinco longos dias antes, Ana Pinho, observando que poucos museus se poderiam gabar de apresentar ao mesmo tempo três artistas com a dimensão de Mapplethorpe, Anish Kapoor e Jeff Koons, explicou que Ribas tinha exposto “exactamente o que quis” e que fora também ele próprio a sugerir a existência de uma zona reservada no percurso expositivo.
Ou seja, e resumindo: há oito meses, o novo director artístico estava entusiasmado com as suas novas responsabilidades em Serralves e a administração não tinha dúvidas de que fora escolhida a pessoa certa para suceder a Cotter. O que aconteceu depois disso foi que Ribas programou uma exposição que a administração reconhece ser um motivo de orgulho para Serralves, e fê-lo, garante essa mesma administração, em plena liberdade e sem a menor interferência. E quando essa exposição foi finalmente inaugurada, a 20 de Setembro, João Ribas achou que o mais adequado era festejar o acontecimento apresentando, logo no dia seguinte, a sua demissão do cargo.
A menos que altere substancialmente o pouco que tem dito até agora, será essencialmente este o relato que a administração de Serralves levará esta terça-feira à Comissão de Cultura do Parlamento, onde será ouvida por volta das 16h30, logo após a audiência agendada com João Ribas. Talvez fosse boa ideia os deputados pensarem em convocar também um psiquiatra, já que parece difícil aceitar esta versão dos acontecimentos sem encarar seriamente a possibilidade de que Ribas, como o protagonista do célebre poema Serradura, de Mário de Sá-Carneiro, se tenha subitamente “lembrado de endoidecer”.
E no entanto, se me é perdoado um mero palpite, tenho de confessar que não me surpreenderia excessivamente se os deputados, mais coisa menos coisa, comprassem este argumento manifestamente inverosímil. Depois de os membros da Comissão de Cultura – com a honrosa excepção dos deputados do BE – terem visitado a exposição de Mapplethorpe acompanhados por toda a administração de Serralves e, por pedido expresso de Edite Estrela, sem jornalistas por perto, as coisas não parecem bem encaminhadas para uma audição isenta. “São os donos da casa”, justificou no final da visita a presidente da Comissão, enquanto o deputado socialista José Magalhães observava aos jornalistas: “Estão a ver o consenso que aqui se gerou? Antes de se atirar pedras é preciso perceber o que se passou”. Se tivesse sido Ribas a sugerir aos deputados guiá-los numa visita para lhes explicar o que ocorrera, sem a administração e sem jornalistas, a Comissão teria aceitado?
Que os deputados que vão intervir nestas audições tenham querido ver a exposição parece razoável – quanto mais não seja porque vale a pena vê-la –, mas poderiam tê-lo feito a título individual e no horário de expediente. Ao organizarem e anunciarem a visita deste modo, convinha perceber o que pretendiam ao certo esclarecer. Se não é inconcebível que algum curador ou técnico com um olhar muito treinado consiga, a partir da exposição tal qual está, pressentir que o respectivo processo de montagem possa ter sido mais ou menos conturbado, não parece provável que esse tipo de intuição profissional esteja ao alcance da generalidade dos deputados. Só podemos portanto esperar que não tenham ido a Serralves para decidir se fazia sentido haver um espaço reservado, ou se foi acertada a escolha das fotografias a colocar nessas salas. Se a administração de Serralves, segundo todas as probabilidades, achou que lhe cabia essa função, e é censurável que não o assuma claramente, era o que faltava que viessem agora os deputados, enquanto tal, dar-nos palpites sobre a natureza mais ou menos perturbadora das imagens de Mapplethorpe ou o que devemos ou não mostrar aos nossos filhos menores.
Outro motivo para recearmos que a audição parlamentar não se revele demasiado esclarecedora é a própria atitude de Ribas. Depois de se ter demitido, esteve sempre em silêncio, que só quebrou após a conferência de imprensa da administração para enviar um comunicado escrito à imprensa, no qual denuncia “interferências na exibição de determinadas obras e na localização de outras”, que teriam ocorrido já durante a semana de montagem e que “contribuíram para uma descontextualização profunda” e o obrigaram, “enquanto curador, a alterar a selecção dos trabalhos para que a exposição fosse um todo coerente”. Mas não adianta pormenores nem aponta o dedo a um ou mais administradores específicos.
Veremos se o faz na audição. E se o fizer e a administração mantiver a sua versão, não valeria a pena a Comissão de Cultura ouvir os vários técnicos de Serralves que assistiram ao processo de montagem? Mas convém estarem conscientes de que os funcionários da Fundação estão obrigados a uma cláusula de confidencialidade de alcance um tanto hiperbólico ao abrigo de um Código de Conduta imposto ainda no consulado da ex-directora geral Odete Patrício. Deixa-se aqui um esclarecedor excerto desse documento: “Assim, nenhum colaborador pode, fora das suas atribuições, revelar a qualquer pessoa informação, de qualquer natureza, relativa à actividade da Fundação, estando obrigado a guardar sigilo absoluto em todos os assuntos relacionados com a sua actividade, não podendo guardar para si cópias, fotocópias, duplicados ou documentos desta. Esta obrigação de confidencialidade mantém-se em vigor após a cessação, por qualquer causa, do vínculo com a Fundação. Assim sendo, é esperado de todos os colaboradores uma total discrição e segredo relativamente a todo o tipo de informação a que tenha tido acesso, não transmitindo os seus conteúdos a ninguém exterior à Fundação, incluindo família e amigos”.
Sabemos ainda que, com duas excepções, toda a equipa do Museu de Serralves subscreveu uma carta enviada à administração na sequência da demissão de Ribas. Seria interessante que os deputados pedissem para ver essa carta.
Pode ser que a mudança de ministro da Cultura ainda venha a tempo de tornar este processo um bocadinho mais respirável, já que com o anterior, que se mantinha calado enquanto os seus representantes em Serralves eram os que mais zelosamente defendiam a presidente da administração, qualquer funcionário que sentisse a tentação de contrariar a versão oficial tinha boas razões para achar que se arriscaria em vão.
Com muito ainda por esclarecer, uma das possíveis leituras dos poucos factos conhecidos é a de que havia um braço-de-ferro entre Ribas e administração e que este deu uma entrevista ao PÚBLICO, para sair a uma semana da inauguração da exposição de Mapplethorpe, já para forçar o confronto e justificar uma demissão previamente decidida. Mas porque se deu então ao trabalho de guiar uma visita com jornalistas ao final da manhã do próprio dia da inauguração sem fazer qualquer referência às depois denunciadas interferências?
Uma hipótese talvez não inteiramente implausível é que, quando disse ao PÚBLICO (Ípsilon de 14 de Setembro) que “os nus ou as imagens de práticas sexuais estão integrados noutras séries, acompanhando a organização cronológica da exposição” e que “cabe ao espectador a responsabilidade ou a decisão de condicionar ou mediar o acesso às fotografias, no caso, por exemplo, de estar acompanhado de menores de idade”, esta descrição fosse perfeitamente compatível com a exposição que estava a começar a montar. Nessa altura ainda não saberia que aos avisos que pretendia colocar à entrada da exposição e na sala que concentrava a maior parte das imagens potencialmente mais perturbadoras, iria ser acrescentado um papel, obviamente colado à pressa no próprio dia da inauguração, a alertar para a “dimensão provocatória” e o “carácter eventualmente chocante da sexualidade contida em algumas das imagens expostas” e a vedar liminarmente o acesso a menores de 18 anos. Um aviso depois substituído por outro semelhante, mas num design mais profissional, e por sua vez retirado quando a administração percebeu que estava a escudar-se numa legislação sem qualquer aplicabilidade a exposições de arte.
Como os deputados terão tido ocasião de ver, não faltam imagens de falos nas primeiras salas e nem tudo é sexo nas de acesso reservado, o que também parece confirmar que Ribas, como diz na entrevista ao PÚBLICO, procurou modos de evitar criar uma espécie de ghetto moralista de imagens interditas.
O que aconteceu depois, se acreditarmos no que o curador e artista Paulo Mendes disse ao jornal i, foi que os administradores Ana Pinho, Isabel Pires de Lima e Manuel Ferreira da Silva fizeram três visitas à exposição nos últimos dias da montagem e “apontaram várias obras que tinham de mudar de localização” e ser remetidas para as salas de acesso restrito. Um relato que coincide com a declaração de Ribas de que teve de “alterar a selecção dos trabalhos para que a exposição fosse um todo coerente”, e que pode ajudar a explicar porque é que acabou por desistir de expor uma série de fotografias que tinha pré-seleccionado.
Entre as sucessivas imagens que Ribas alegadamente foi obrigado a deslocar por indicação da administração (e “obrigado” será um termo demasiado forte, já que podia sempre ter-se recusado a fazê-lo), haverá duas – as tais que, segundo se lê no seu comunicado, teria sido “intimado a retirar” no “próprio dia da inauguração” – que terão acabado mesmo por saltar da exposição, provavelmente por já não ter havido tempo para voltar a refazer a sala reservada. Até agora, o ex-director não identificou essas peças.
Claro que se pode sempre achar que colocar uma fotografia num sítio ou noutro não muda nada e que esta é uma polémica sem sentido, embora os que assim pensam, menorizando a dimensão autoral das curadorias artísticas, possivelmente não diriam o mesmo se lhes alterassem os parágrafos num texto ensaístico ou passassem algumas frases para notas de rodapé.
Não é por acaso que esta polémica está a ter consequências para a reputação de Serralves, uma instituição que, recorde-se, o Estado financiou com 4,270 milhões de euros em 2018. Há um coleccionador importante que já afirmou ir retirar obras que emprestara e o presidente da Câmara do Porto ameaça rever a relação da autarquia com a fundação, para citar apenas dois exemplos mais óbvios.
Os administradores de Serralves são, como exemplarmente resumiu Edite Estrela, os donos da casa, e têm o poder estatutário para expor o que quiserem e como quiserem, mas num mundo em que é cada vez mais difícil evitar que os próprios museus de arte contemporânea contribuam para a promoção do já consagrado e para a neutralização do que a arte ainda pode ter de perturbador e disruptivo, a única esperança parece residir em dar liberdade aos directores artísticos, que pelo menos sempre terão consciência do risco que correm de ser cúmplices desse mundo de recordes de visitantes e valorizações comerciais astronómicas das obras de alguns artistas.