A capela metafísica de Carla Juaçaba
É só preciso um banco e uma cruz para fazer uma capela. Se estes já eram gestos sintéticos, a escolha do material, um aço espelhado, fez esta capela ser quase imaterial. Pode um arquitecto ser tão contextualista que a sua arquitectura se torna invisível na natureza?
É fácil quando vamos à procura do que já conhecemos. E foi assim com o primeiro encontro que tivemos com a arquitectura de Carla Juaçaba, em Veneza. A sua capela que podemos ver na ilha San Giorgio Maggiore, mesmo em frente à Praça de S. Marcos, é uma das dez encomendadas pelo Vaticano para a Bienal de Arquitectura de Veneza, e tinha sido elogiada por Eduardo Souto de Moura, outro dos arquitectos escolhidos para a estreia da Santa Sé nesta exposição internacional que junta mais de 60 países.
Situada num bosque mesmo ao lado da capela feita de enormes blocos de pedra do arquitecto português, é a antítese da proposta de Souto de Moura, o objecto desenhado pela arquitecta brasileira é todo leveza. Duas cruzes, uma vertical e outra horizontal, o altar e o banco, apenas o essencial. Construídas com quatro traves de aço inoxidável, tornam-se quase invisíveis, por causa da sua superfície ultrapolida e da capacidade para reflectir a natureza.
A obra de Carla Juaçaba em Veneza tem sido descrita de muitas maneiras: minimalista, estruturalista, figurativa, uma escultura. O que é que ela é, afinal? — perguntámos numa entrevista telefónica à arquitecta brasileira que chegou a Portugal esta semana com uma agenda bem preenchida, entre conferências e exposições. “Eu acho que é um projecto de arquitectura. Tem um programa que configura um lugar. É o programa de uma capela: sentar num banco e olhar para o sofrimento que é a cruz. Por isso, um programa configura-a já como um projecto de arquitectura.” Carla Juaçaba cita Aldo Rossi para explicar como é que a arquitectura surge ali naquele bosque à beira da água: “Com os instrumentos arquitectónicos, nós favorecemos um acontecimento, independentemente de ele acontecer.”
A arquitecta brasileira nascida no Rio de Janeiro em 1976 está hoje em Matosinhos na Casa da Arquitectura, às 16h30, para apresentar o seu trabalho numa conversa intitulada Poéticas Espaciais, com José Miguel Rodrigues, professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e crítico de arquitectura, integrada na programação paralela à exposição Infinito Vão — 90 Anos de Arquitectura Brasileira, inaugurada no final de Setembro.
Na véspera, estava marcada a presença de Carla Juaçaba na 6.ª Bienal da Pedra de Marco de Canaveses, com o objectivo de dar início a uma colaboração entre a Casa da Arquitectura e este evento dedicado ao granito, à volta de um projecto futuro da arquitecta carioca em Portugal: um pavilhão a implantar naquele concelho no próximo ano.
Já na terça-feira, apresentará também o seu trabalho em Lisboa, numa sessão na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa com início previsto para as 10h30 na sala do Cubo. Por último, na sexta-feira, uma exposição intitulada Estudo para Algum Projecto, com curadoria de Bárbara Silva, vai inaugurar às 19h o novo espaço da Galeria de Arquitectura Note (Travessa da Cara 32), que inclui uma instalação em aço feita para Lisboa, além da apresentação de vídeos e imagens sobre os projectos mais relevantes de Juaçaba.
A primeira abordagem ao projecto da capela, explica-nos Carla Juaçaba, foi, então, feita a partir desses elementos básicos que constituem uma capela, o banco e a cruz. “Foi a síntese desses elementos que no final resultou numa imagem muito resumida de tudo. Primeiro pensei no banco da capela, que nunca é confortável; depois, sentar e olhar para o altar. Isso foi completado com a ideia de lugar: existia na natureza em volta uma clareira, quase uma cúpula. A natureza conforma também, ajuda a formar esse espaço. Esse lugar, esse céu, essa cúpula, que já tinha ali.”
A capela é imaterial, incorpórea. Essa ambivalência, entre o visível e o invisível, é uma estreia na obra da arquitecta, diz-nos Carla Juaçaba. “Este projecto já é pouca coisa e ainda por cima é reflexivo. Ele quer ser quase invisível. Nunca tinha usado essa coisa do invisível tão ao pé da letra. A capela aparece e desaparece. Tem essa coisa que é a vida...” A escolha do aço inoxidável polido, que provoca este efeito de espelho, só surgiu num segundo momento do projecto: “O desenho veio primeiro. Depois perguntei em que é que vai ser feito. Será que é só aço? O elemento reflexivo veio depois para fechar a ideia dessa quase invisibilidade. Dessa imaterialidade.”
As sombras como matéria
As árvores do bosque, o movimento das suas folhas, dão outra pele à capela. Lembramo-nos do bruxulear da luz ao final da tarde quando vemos as imagens de um dos seus últimos projectos, a Casa de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, datada de 2017. A cobertura, dividida em duas águas, também usa o tema das sombras, com os vidros opalinos ou transparentes a provocar efeitos diferentes sob as copas das árvores. “Essa galeria, esse corredor, vai ligando a casa toda. A casa tem essa coisa das árvores em cima, essas sombras. É por isso que é possível o vidro, senão seria quente demais.” Se a presença das sombras na casa se sente mais junto à entrada, uma vez que junto à estrada a casa está mais camuflada, o volume vai abrir-se todo para a frente, para a vista da Baía de Guanabara.
O projecto é muito linear, muito simples, explica a arquitecta. “É um percurso, com dois desníveis. Um percurso em cima e outro em baixo. É uma repetição de módulos a cada dois metros, para a estrutura ficar muito firme e muito barata. Esse esqueleto, muito fininho, também acabou por ser um dos motivos do projecto.”
Se Carla Juaçaba está ao lado de Souto de Moura nas capelas do Vaticano, é vizinha de Álvaro Siza com outra obra, desta vez apresentada nos jardins do Arsenale, onde está o pequeno pavilhão que o arquitecto português fez para a Bienal de Arquitectura de 2013 e que acabou por ficar em permanência em Veneza. Carla Juaçaba diz que Ballast ficou apenas na fase de protótipo, muito aquém do projecto original. Era para ser um banco feito de cordas de navio e grandes blocos de cimento, uma referência aos quebra-mares de Veneza. “Aquilo foi uma coisa que não deu tão certo. A gente fez um protótipo do que seria um suporte de concreto [cimento], que iria segurar uns cabos de navio, e todo o mundo se ia deitar nesses cabos. Mas ficou caríssimo e virou um protótipo de escala 1:3. Aí não virou escultura, nem banco, nem nada.”
A relação de Carla Juaçaba com a arquitectura portuguesa, diz a própria, é importante e tem vindo a crescer. Quando fez uma das suas primeiras obras, a Casa Rio Bonito (2005), falaram-lhe das semelhanças com Eduardo Souto de Moura e ela não conhecia o arquitecto do Porto, vencedor este ano do Leão de Ouro da Bienal de Veneza. É o que conta numa conversa com Bárbara Silva, directora da nova galeria de arquitectura de Lisboa, numa entrevista feita a propósito da exposição e que será publica num pequeno catálogo. “Quando a casa foi publicada, toda a gente fazia a associação com algumas casas do Souto de Moura, por causa dos muros em pedra. Eu não conhecia o Souto de Moura! E fiquei com muita vergonha de não conhecer. Não estava ligada. Depois disso, comecei a estudar os arquitectos portugueses. Eu admiro muito como eles trabalham os materiais, pensam no contexto da obra com o lugar.” As casas de Carla Juaçaba, como escreve Bárbara Silva, professora na universidade PUC-Rio, estabelecem uma relação muito íntima e delicada com a natureza densa e exuberante do Rio de Janeiro.
A arquitecta carioca estuda também outras arquitecturas, diz ao P2, mas acha que a portuguesa lhe tem ensinado muito. “Eu acho que a diferença da arquitectura portuguesa em relação à brasileira é que ela sabe ser contextualista, ela sabe se adaptar aos lugares. Acho que a arquitectura brasileira ainda é muito modernista.” Ser moderno, notamos, costuma ser um elogio quando vem associado à arquitectura brasileira. “Sim, mas ela se impõe muito, não se preocupa tanto com o entorno. Ela quer ser sempre aquele objecto que é impositivo, parece que quer fundar o lugar. Acho que a arquitectura portuguesa é bastante mais discreta, encontrando o seu lugar, às vezes com mais presença, outras com menos.”
Na exposição da Casa da Arquitectura, em Matosinhos, Carla Juaçaba está presente na exposição Infinito Vão, com o Pavilhão da Humanidade (2012), uma obra efémera que concebeu com a encenadora e cenógrafa Bia Lessa para a Conferência das Nações Unidas sobre Sustentabilidade Rio+20, um dos seus projectos mais conhecidos e a razão para ter sido escolhida para fazer a capela em Veneza. Foi convidada por Bia Lessa para trabalhar numa estrutura que já existia no Forte de Copacabana, uma tenda de plástico erguida sobre uma base de andaimes.
O projecto aproveitou apenas os andaimes, que nessa altura formavam um pequeno embasamento com 170 metros de comprimento, suficientemente elevado para se conseguir apreciar a vista de Copacabana. “O que eu fiz quando visitei o lugar foi tirar o plástico branco e seguir uma estrutura que já estava ali. Ela tinha cinco metros de altura e passou para 25.”
Todos os espaços necessários, como o auditório, foram sendo subtraídos a essa estrutura, encaixando-se nos vazios obtidos. “É um projecto de 9000 metros quadrados com pouco desenho. É uma espécie de um sistema. O grande trabalho de arquitectura era fazer conexões, rampas e elevadores.” Os desenhos do Pavilhão da Humanidade passaram a integrar a colecção de arquitectura brasileira que está a ser construída pela Casa da Arquitectura.
Elevar os objectos do chão
Não se procure uma razão na iconografia cristã para as sete vigas de betão que suportam a cruz horizontal da capela — por exemplo, uma relação com os sete passos da Paixão de Cristo. “Para mim, essa ideia de projecto era só para dar uma métrica ao objecto e elevá-lo do chão.” Fazer os objectos flutuar, diz Carla Juaçaba, é uma obsessão brasileira. “Essa coisa da linha suspensa, que nunca encosta ao chão.” Se nesta capela só eram necessárias três figas que fizessem as fundações, no número sete a arquitecta encontrou uma unidade de medida para o objecto. “Foi o que eu pensei, mas muita gente me falou do simbolismo do número sete, como o seu significada na cultura indiana.”
Mas a leitura de que Carla Juaçaba mais gostou foi mesmo a de uma crítica de arquitectura brasileira, Ana Luiza Nobre. Falou-lhe de ossatura, de esqueleto, e Aldo Rossi aflora novamente à conversa. Agora, quando olha para a capela da ilha San Giorgio Maggiore, não consegue esquecer a descrição feita no artigo intitulado Sereníssima, de Ana Luiza Nobre.
Há no traçado da capela, escreve a crítica, uma analogia possível com a espinha dorsal de Rossi para o Cemitério de San Cataldo, em Modena. “Um corpo reduzido à sua ossatura. Purificado. Rumo ao absoluto.”
Uma arquitectura metafísica, dizemos nós, que se eleva do chão não por causa de Le Corbusier e da tradição modernista, na leitura de Carla Juaçaba, mas por causa do índio, que prefere não tocar o solo com as suas arquitecturas palafíticas. “Curioso, porque o arquitecto português está sempre perto da terra. Veja o projecto do Souto de Moura logo ali ao lado. Aquele peso todo, fincado no chão.”
Notícia corrigida: a Bienal da Pedra em Marco de Canaveses teve este ano a 6.ª e não a 7.ª edição.