O género da mentira
Por que razão duvidamos tanto das mulheres quando sabemos que a violência sexual é recorrente?
Em 2017, a conceituada autora Sara Ahmed publicou o livro Living a Feminist Life, no qual explica a desigualdade a partir de experiências de opressão quotidiana. Nesse trabalho, Ahmed expõe a ideia de que alguns corpos nunca estão seguros e que para algumas pessoas é recusada a possibilidade de se sentirem em casa no mundo. E, de facto, tempos recentes revelam como o direito à segurança e integridade tem sido violado através da desproteção jurídica, da discriminação e de ataques de natureza sexual.
Alguns destes ataques parecem autorizados por uma cultura dominante que desculpabiliza comportamentos violentos nos rapazes, ao mesmo tempo que espera que as raparigas continuem a não ter ouvidos. Sucede que hoje as mulheres têm ouvidos – sabemos o que significa cada piropo, sabemos lindamente distinguir entre sedução consentida e abuso, e sabemos sobretudo que não estamos sós. Connosco está um exército de mulheres que falam e de mulheres (ainda) caladas, algumas das quais são as nossas avós, fruto de relações abusivas por parte de patrões intocáveis. Todas incorporamos desconforto e violência; todas habitamos um corpo que em algum momento não se sentiu em casa no mundo.
Essa memória de ataques não consentidos encontra hoje um lugar de legitimidade por oposição a uma vergonha que lhe fora indevidamente imposta. A vergonha não é nossa; nossa é a náusea, a raiva, a indignação. Vergonha é não saber ouvir. Vergonha é falhar em perceber o aspeto mais elementar na relação entre humanos – o consentimento. Vergonha é sujeitar uma mulher que denuncia a um escrutínio sem escrúpulos que a coloca sob suspeita à partida e sem remissão.
Por que razão duvidamos tanto das mulheres quando sabemos que a violência sexual é recorrente? Se não acreditamos nas poucas mulheres que falam, então onde estão as mulheres em quem estamos disponíveis para acreditar? Quem são?
Uma em cada três mulheres foi vítima de pelo menos um ataque de natureza sexual ao longo da vida. Só para o contexto português, a violação foi o crime violento que mais aumentou no último ano e aumentou de forma alarmante – 21,8% face ao ano anterior. Mas se olharmos às denúncias de violência sexual em sentido amplo, vemos que esse aumento chega aos 53% entre 2013 e 2016. E no entanto, apesar da evidência estatística, constata-se que as mulheres que denunciam enfrentam invariavelmente uma onda de descrédito e devassa das suas vidas privadas que não encontra precedente em nenhum outro tipo de processo. Sempre teremos excepções, mas os números também nos provam que em 98% dos casos as vítimas de violência sexual estão a dizer a verdade. E por que razão deveriam mentir? Quem gostaria de ver a sua vida pessoal examinada à lupa se não houvesse razão de força maior para o fazer?
Custa-me filtrar o tom e os termos com que me expresso quando interpelada sobre este tema. Como se o meu lugar de fala fosse mais débil, necessariamente comprometido com uma qualquer polarização acrítica que me faria sempre pender para um dos lados. Como se isto das mulheres e dos homens – e de tudo quanto vai para além do redutor mito do binarismo de género – não passasse de um campo de batalha, do diz-que-disse, do medir forças ou genitais. A única guerra de sexos que vejo em tempos recentes é aquela que acontece nas caixas de comentários e nos juízos apressadamente machistas, feitos por pessoas de todos os géneros, mas com um forte denominador comum: essas mulheres (nunca as nossas filhas ou mães) são umas galdérias mentirosas, que provocam os homens a transbordar de testosterona da boa (coitados).
Basta. Se alguma coisa está a transbordar não é a testosterona em versão líquida do macho ibérico ou outro, mas antes o saber cumulativo das mulheres e pessoas não binárias cujos corpos foram historicamente profanados e destituídos. E se uma via – em tudo legítima – é a da denúncia, outros caminhos necessários passam pela educação. Alguma coisa devemos ter aprendido que possamos ensinar aos meninos, rapazes e homens de quem gostamos. Ensinar-lhes o que significa consentimento. E o respeito pela autodeterminação. Ensinar aos meninos desde o primeiro ciclo que levantar as saias das colegas de turma e apalpá-las no corredor não é uma brincadeira, é violência. Ensinar-lhes que tocar no corpo de uma pessoa sem o seu consentimento expresso é crime. Ensinar-lhes que nós, suas mães, avós, amigas, professoras, treinadoras e catequistas (sei lá), já fomos meninas que enfrentaram coisas horríveis, violentas, que nos diziam para ignorar, relevar, não dar ouvidos. Coisas de rapazes – a frase que tudo autoriza. E como tudo isso nos fez mal.
Em 2016, 29% das pessoas portuguesas considerava que sexo sem consentimento é justificável em algumas circunstâncias. A autodeterminação sexual é um direito humano fundamental. Não depende da conduta moral da vítima, nem dos níveis galopantes de desejo do agressor. Não existe consentimento subentendido ou implícito.
Pensemos na criança de quem mais gostamos. Enquanto continuamos de forma leviana a desculpar comportamentos violentos nos meninos e homens que estão connosco, a criança de quem mais gostamos – aquela por quem tudo fazemos para que se possa sentir segura e em casa no seu mundo – está estatisticamente entre as pessoas que sofrem abuso sexual em algum momento das suas vidas. Somos todas pessoas responsáveis pelo que lhe vier a suceder. E tudo isto passa por assumir o dever de educar, cuidar e proteger, não abrindo mão da responsabilidade de acreditar nas mulheres que denunciam, porque estamos a dizer a verdade.