Tancos: as três (i)responsabilidades
O que tem de acontecer acontecerá e na pior altura. Mas a questão é muito mais grave e toca os fundamentos do Estado de direito.
Resolvi vir hoje à praça pública, porque me parece que o escrutínio dos factos, relacionados com o descaminho e posterior achamento de material militar de Tancos, tem escondido questões essenciais e conduzido inequivocamente a opinião pública para um cenário imediatista, em que as Forças Armadas e o Exército, em particular, serão os únicos responsabilizáveis pelo acontecido.
Antes de mais, convirá notar que as Forças Armadas são um elemento estruturante do Estado. Foram elas que fundaram o Estado de direito, são elas o garante último da vivência democrática e da soberania e independência que nos resta no quadro das interdependências que os portugueses livremente sufragaram. São elas que contribuem decisivamente para que Portugal tenha um protagonismo internacional incomensuravelmente superior à sua expressão económica e financeira. São elas que formaram Portugal ao longo da sua história de quase nove séculos.
Tentando ser claro que, como se diz, “é para militar perceber” e para político entender, acrescento eu, julgo que nos acontecimentos de Tancos existem, pelo menos, três níveis de responsabilidades: uma responsabilidade militar, uma responsabilidade jurídica-investigativa e uma responsabilidade política.
Senão vejamos: é irrecusável que a responsabilidade militar reside na inadequada salvaguardada e segurança do material militar à sua guarda. São coisas que por muitas razões que possam ser invocadas não podem acontecer!
Incúria, desleixo e até azar não se podem admitir e foram, mau grado algumas incoerências, objeto de sanção disciplinar no estrito âmbito do que hoje é regulamentarmente permitido.
Apesar de tudo... o material apareceu... o que ainda não aconteceu com as 50 pistolas Glock à guarda de uma força de segurança que, misteriosamente, também desapareceram... Maus sinais para as instituições e para os portugueses!
Relativamente à responsabilidade jurídico-investigativa, conquanto seja muito grave e inaceitável a presumível encenação associada ao achamento do material desaparecido, não me passando pela cabeça que possa alguma vez ter existido fora do âmbito da Policia Judiciária Militar idêntica prática, considero igualmente graves e intoleráveis as fugas sucessivas de informação, em já habitual desrespeito pelo segredo de justiça, que facultaram seu conhecimento público, bem como as detenções com reportagem televisiva em direto. É que os julgamentos são inadvertidamente feitos, também de imediato, pela opinião pública e a presunção de inocência logo se transforma em certeza de culpabilidade!
Adicionalmente, quero apenas sublinhar, ainda que superficialmente, as alterações que se vêm verificando no foro militar (Código de Justiça e Regulamento de Disciplina) com a sua aproximação ao civil, limitando a prontidão e liberdade de atuação das chefias e tornando, muitas vezes, inoperante a sua ação.
É que a base da vivência militar é constituída pela hierarquia, pela competência, pela coesão e pela disciplina e o julgamento de todas as ações e atitudes não se compadece com demoras. A base de tudo é a confiança mútua. Sem ela não é possível nem mandar nem obedecer. Hoje não existe na liderança política e também no ativo das Forças Armadas quem tivesse vivido os tempos difíceis da ditadura, da guerra, da implantação do regime e consolidação democrática, mas nunca será tarde, antes que seja tarde de mais, para pelo menos ouvir e corrigir o que deve ser corrigido. Para que a democracia prevaleça é necessário distinguir e até restringir, adequadamente, os direitos de uns, para que todos os outros os possam exercer em pleno.
Passemos então à terceira das responsabilidades — a política. Nos sistemas democráticos, por norma, o poder rege-se por ações que lhe proporcionam vantagens de caráter imediatista, sabendo que a opinião pública, de que depende, só se mobiliza verdadeiramente quando a insegurança lhe bate à porta.
Os riscos e ameaças que de facto põem em causa Portugal como o entendemos, a Europa onde estamos e a democracia que vivemos, não são ou não parecem ser preocupações de maior, não merecendo uma ação estrutural do Estado.
Vamos aos factos: desde que foi instaurado o regime democrático, têm vindo a verificar--se sucessivas reformas das estruturas, do enquadramento legal e reduções de recursos nas Forças Armadas sem paralelo em nenhuma outra instituição do Estado. Por exemplo, os efetivos de hoje materializam uma redução de mais de 60% em duas décadas e os menos de 27.000 que existem não preenchem sequer as necessidades do sistema de forças aprovado.
Quanto aos recursos financeiros, pelo menos há 15 anos que o seu nível (cerca de dez vezes inferior aos apoios dados ao sistema bancário) se mantém em termos nominais, o que significa, em termos reais, uma substancial redução de aproximadamente 20%.
O desinvestimento nas Forças Armadas traduz-se numa logística deficientíssima, em condições de operação marginais, condições de vida desmotivadoras e na impossibilidade de recrutar com suficiência por ausência de voluntários.
Esta situação é insustentável e incompatível com umas Forças Armadas eficientes ou eficazes. Serão capazes de operar sustentadamente e bem em operações de baixa intensidade, mas não poderão fazer (o grau varia de ramo para ramo) aquilo que verdadeiramente lhes compete, ou seja, atuar em níveis superiores de conflitualidade.
Mas, tão ou mais grave do que o desinvestimento material é, em minha opinião, o que de há muitos anos se vem passando no desinvestimento ético. Esse desinvestimento é feito pelos exemplos degradantes no comportamento cívico de certa elite económica, financeira e política que se transmite à instituição militar e também nas correspondentes alterações dos regimes legislativos, seja nas vertentes da justiça e de disciplina, seja no âmbito estatutário, não reconhecendo, por exemplo, de forma adequada a especificidade da condição militar, a que acresce a enorme degradação dos apoios à saúde e proteção social.
Às chefias tem sido retirado sucessivamente poder de decisão financeira, operacional e disciplinar, o que se traduz numa diluição da ação de comando de consequências graves e que são hoje publicamente indisfarçáveis numa instituição de fundamento hierárquico. Se olharmos para evolução das contas do Estado, os objetivos e as estratégias políticas são evidentes; as funções de soberania não são e não têm sido prioritárias.
Assim, o “caso de Tancos” é apenas o afloramento de uma grave crise da instituição militar que, a par de outras funções soberanas do Estado, vem de há muitos anos e tarda em ser resolvida ou mesmo atenuada. Só por hipocrisia, ou esgrima de baixa política, se podem assacar responsabilidades unicamente ao poder atual a não ser as de tardar em reverter a situação. Contudo, o que tem de acontecer acontecerá e na pior altura... mas a questão é muito mais grave, muito mais antiga e toca os fundamentos do Estado de direito. Sobretudo, não se tente usar ou imiscuir as Forças Armadas no combate político. Nós, os mais velhos, já assistimos a isso e às suas consequências e cá estamos, pelo menos, para o dizer!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico