O caos ordenado de Bach no corpo emocional e social de Anne Teresa de Keersmaeker

Pela quinta vez na sua carreira, a coreógrafa belga cria a partir da música de Bach. Mas nunca tinha sido tão ambiciosa quanto nestes Seis Concertos Brandeburgueses que traz à Culturgest a 12 e 13 de Outubro. Uma peça de harmonia para responder a um mundo em descontrolo.

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Anne Van Aerschot

A monumentalidade da música de Bach intimida. É tão grandiosa que a coreógrafa belga Anne Teresa de Keersmaeker cita a inclusão de um excerto dos Concertos Brandeburgueses no Voyager Golden Record, lançado a bordo da nave Voyager em 1977 (uma selecção de sons e de música representativas da diversidade cultural do planeta, segundo escolhas de um conselho a que presidia Carl Sagan), como prova de que se trata de um dos grandes feitos artísticos da Humanidade. Mas quando Keersmaeker dá este exemplo do carácter excepcional da criação de Bach parece estar, na verdade, a destacar não tanto a escolha em si, mas o lugar devido das peças do compositor alemão, como se não pudessem obedecer aos constrangimentos terrenos e a música fosse demasiado infindável para poder ser contida pelos limites físicos do planeta.

Terá sido esta relação respeitosa e a intimidade com os Concertos Brandeburgueses a levar Anne Teresa de Keersamaeker a escutá-los repetidamente no estúdio nova-iorquino em que preparava a peça Violin Phase, a partir da composição de Steve Reich, neles buscando uma candeia que alumiasse o caminho para a criação, mas sem se atrever a sobrepor movimento àquela música. Na altura, em 1980, tal desfaçatez seria algo da ordem da heresia. E a coreógrafa reconhecia em si a falta de ferramentas e recursos para abordar tamanha complexidade. “Conhecia bem os Concertos mas, por isso, não me sentia ainda preparada para os coreografar”, diz ao Ípsilon alguns dias depois da estreia mundial de Seis Concertos Brandeburgueses em Berlim, antes de chegar à Culturgest, a 12 e 13 de Outubro, como espectáculo de honra do 25º aniversário da sala lisboeta. “Agora sim, com mais 36 anos de prática coreográfica, senti que podia dar uma resposta criativa a essa espantosa música que considero um convite directo à dança – porque se trata de peças extremamente vitais e celebratórias, autêntica arquitectura em movimento.”

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Anne Teresa de Keersmaeker fala da música de Bach como contendo, por vezes num só sopro, a expressão de toda a paleta emocional do ser humano Anne Van Aerschot

A reconhecida complexidade e a atenção ao detalhe de Bach implicou um longo período de preparação de uma coreografia para 16 bailarinos – o mais amplo elenco com que trabalhou até hoje –, com Keersmaeker a dedicar-se ao estudo minucioso da partitura, acompanhada pelo aconselhamento de musicólogos e da directora musical Amandine Beyer (com quem tinha trabalhado em Partita 2, um dueto em co-autoria com Boris Charmatz). E depois, à medida que um pequeno grupo de bailarinos a ajudava a construir um vocabulário com que pudesse compor uma correspondência às ideias musicais que Bach vai espalhando por cada um dos seis concertos, Keersmaeker foi, passo a passo, escrevendo uma partitura coreográfica que segue compasso a compasso, página a página, a obra do alemão.

E segue as notas inscritas nas partituras com uma leveza de movimentos e uma delicadeza tais que, com frequência, parece tornar os corpos dos bailarinos alheios à gravidade (como se não precisassem de tocar o solo), muitas vezes em sequências poéticas, outras carregadas de uma espiritualidade que Keersmaeker não nega. “Quando se trabalha com dança”, justifica, “trabalha-se com o corpo enquanto matéria sensual. É sempre um corpo emocional e um corpo social, é sempre um corpo que pensa e que, por diferentes razões, tem uma dimensão espiritual. Penso que os seres humanos negligenciam muito o facto de serem seres espirituais, ligados a algo que os transcende, e pertencentes àquilo que se pode chamar uma derradeira dimensão – e que é a dimensão cósmica. Claro que todas essas camadas se ligam e interagem umas com as outras.”

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Agora sim, diz Anne Teresa, com mais 36 anos de prática coreográfica, sentiu que podia dar resposta criativa aos Concertos Brandeburgueses de Bach, música que considero um convite directo à dança Hugo Glendinning

Também essa ordem cósmica está presente na obra de partida, acredita a coreógrafa. “Sentimos sempre a música de Bach”, escreve Anne Teresa no programa de sala da sala berlinense Volksbühne, onde teve lugar a estreia mundial a 12 de Setembro, “como se fosse um caos ordenado ou uma ordem caótica a comandar”. E é, de facto, ordem que encontramos em cada um dos Seis Concertos Brandeburgueses dançados por três gerações da companhia Rosas, fundada por Keersmaeker em Bruxelas, em 1983, durante a criação de Rosas danst Rosas – mesmo quando há chispas de tensão e de descontrolo a apoderar-se dos bailarinos.

A busca pela harmonia

Anne Teresa de Keersmaeker fala da música de Bach como contendo, por vezes num só sopro, a expressão de toda a paleta emocional do ser humano, desde manifestações de exuberância e jovialidade à mais profunda dor ou castigadora melancolia, do prazer à autopunição, da felicidade à humilhação, da alegria à vingança. Acontece que, no diálogo que estabelece com Bach, a coreógrafa troca argumentos sobre muitas destas pontadas emocionais, mas faz sobrevir, antes de mais, uma relação harmoniosa entre os corpos, como se a melancolia ou a exaltação se mostrassem em cadeia, tão depressa contaminando os bailarinos um a um quanto expurgadas em colectivo. Mesmo quando atribui diferentes instrumentos a um grupo de bailarinos e desencontra os seus discursos em palco, há uma atracção fatal pela harmonia desses vários níveis de discurso.

Questionada pelo Ípsilon, Anne Teresa não nega que Seis Concertos Brandeburgueses busque essa harmonia como forma de rejeição da desarmonia que a coreógrafa vê disseminar-se de forma desgovernada à sua volta. “Busquei essa noção de harmonia como contraponto a este caos complexo e aos tempos perigosos em que vivemos, cheios de enormes e inquietantes questões sobre o futuro que nos trará a próxima década”, diz-nos. Em Berlim, na Volksbühne, após a estreia recebida com uma ovação que se estendeu por dez minutos, a coreógrafa seria chamada a discursar numa recepção para convidados cortesia de Geert Bourgeois, primeiro-ministro da Flandres.

Na ocasião, ao invés de se ater às habituais e inofensivas palavras de circunstância que pudessem enaltecer o trabalho colectivo em torno de Seis Concertos Brandeburgueses, aproveitou a localização da Volksbühne na Rosa Luxemburg Platz para lembrar o bárbaro assassínio de Rosa Luxeumburgo e de Karl Liebknecht naquela mesma cidade, em 1919, pouco depois de terem fundado o Partido Comunista Alemão, na sequência da criação de um movimento que se opunha às circunstâncias da I Guerra Mundial. Ao lembrar duas mortes motivadas por razões ideológicas, punitivas de diferentes visões do mundo, a coreógrafa encaminhava as suas palavras para, pouco depois, se referir à coincidência quase inconciliável de um mesmo país ter legado ao mundo dois seres tão contraditórios quanto Johann Sebastian Bach e Adolf Hitler (mesmo que nascido na Áustria). E nestas digressões do seu discurso pela política, por um posicionamento de pronunciado receio e clara advertência face à subida alarmante de movimentos de extrema-direita um pouco por toda a Europa (e pelas Américas), não mascarava a sua a sua revolta contra a recorrente vocação global para a intolerância.

Daí que afirme que, com Seis Concertos Brandeburgueses, embarca numa “procura por espaços onde possamos partilhar um sentido de harmonia, de beleza e de justiça”. “E talvez me atrevesse até a dizer a palavra ‘amor”, acrescenta. Mesmo hesitando em classificar esta criação como “uma peça política”, garante que “a abstracção corporal da dança não significa que esteja desligada ou não defenda qualquer tipo de empatia. No caso, este forte sentimento de harmonia e de justiça.”

Andar com o abecedário

Os primeiros minutos de Seis Concertos Brandeburgueses confundem-se uns com os outros. Enquanto arranca o primeiro concerto – há divisões claras entre os seis momentos, ao género de intervalos entre os vários rounds de um combate de boxe –, os 16 bailarinos avançam e recuam no palco com passo determinado, numa prolongada apresentação dos seus corpos ao público, “através do mais simples movimento humano que existe – andar”, explica Anne Teresa de Keersmaeker. É uma demonstração prática de um dos princípios que a belga tem aplicado às suas criações, neste caso intitulado “my walking is my dancing” – outros há, com efeitos em várias peças, como “my talking is my dancing” ou “my breathing is my dancing”. São princípios que, de uma forma simples, alimentam a coreografia.

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Em Seis Concertos Brandeburgueses, essa caminhada em vai-vém colectiva é, aqui e ali, interrompida por um ou dois bailarinos que, livrando-se de algumas peças de roupa do dia-a-dia ou dos saltos altos, rompem com esse impassível movimento pendular que sublinha a linha de baixo marcada por Bach – algo que acontecia já em Mitten wir im Leben Sind, coreografia para as Suites para Violoncelo do mesmo compositor, que Anne Teresa estreou em 2017 e que correspondia a uma abordagem mais íntima e de pequena escala à obra do alemão. Ousam assim gestos que desobedecem ao movimento grupal. E é tentador ler nestes pequenos focos de autonomia bolsas de individualismo que se libertam das obrigações sociais e quotidianas. Mas o primeiro concerto é sobretudo informado pela transposição (pouco óbvia) de elementos de caça – a mesma temática que Bach adoptou para a composição.

Na coreografia de Anne Teresa, a caça torna-se apenas explícita quando um cão surge em palco, levado pela trela, e acompanha o rumor de passos para trás e para diante. Funciona também como elemento de imprevisibilidade enxertado numa peça metódica, desenhada ao detalhe e com uma constante preocupação em acompanhar os momentos da música sem também a dança ser levada pela trela – “A dança tem de ser uma parceira independente da música e nunca se deixar deslumbrar por isso”, escreve a coreógrafa no programa – mas não deixa de atestar a sua convicção de que “as criaturas com as quais partilhamos o mundo” e que considera “parte da família”, devem ter também o seu lugar nesta perspectiva harmónica da vida comunitária.

Se o cão transporta consigo a imprevisibilidade em palco, podendo intrometer-se nos movimentos dos bailarinos e obrigando a uma reacção menos esperada, a verdade é que pouco pode abanar a estrutura sólida montada por Anne Teresa de Keersmaeker com base na construção de um vocabulário “que tem de ser arquitectonicamente muito forte e consistente, tem de ter uma clareza clássica, mas que permita também uma abordagem contemporânea do corpo que é mais fragmentária”. E esse vocabulário tem ainda de respeitar a elegância e beleza discursiva de Bach, de forma a produzir “uma linguagem coreográfica que possa traduzir a complexidade da música que é extremamente iluminada pela sua clareza” – e que não perde definição mesmo com a ornamentação característica do barroco. É por isso que, tal como na arquitectura barroca, defende Keersmaeker, “é preciso ter linhas centrais muito sólidas para que as extremidades possam ter pormenores fantasiosos”.

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Anne Teresa de Keersmaeker fala da música de Bach como contendo, por vezes num só sopro, a expressão de toda a paleta emocional do ser humano Anne Van Aerschot

A construção desse vocabulário corresponde a “uma espécie de narrativa secreta baseada nas diferentes letras do abecedário”. Para isso, Anne Teresa de Keersmaeker baseou-se no abecedário do filósofo francês Gilles Deleuze, ligando palavras e conceitos específicos a gestos ou corporizações desses conceitos. Na verdade, Deleuze recusou sempre ser transformado em tema cinematográfico através da abordagem da sua vida ou do seu pensamento. Até que a sua antiga aluna, discípula e amiga Claire Parnet lhe propôs registar um conjunto de entrevistas em que o francês disserta livremente a partir de palavras que avançam pelo abecedário, de Animal a Zigzag, passando pelo T de ténis ou pelo D de desejo. É também um mapeamento de 25 palavras transformadas em movimento que impele os Seis Concertos Brandeburgueses para a frente, que empurra ideias e desencadeia sequências sem qualquer obrigatoriedade de esboçar narrativas mastigadas para o entendimento humano. Pelo contrário, Keersmaeker prefere o reino da abstracção. E é por lá que se demora, numa relação deleitada com os corpos e as gestualidades.

A familiaridade

Em 1980, no momento em que preparava uma das suas primeiras obras, Violin Phase, em Nova Iorque, e que rapidamente a notabilizou entre os criadores da dança contemporânea, Anne Teresa de Keersmaeker percebeu que a música de Steve Reich lhe permitia uma ligação mais imediata ao movimento. Os Concertos Brandeburugueses cuja escuta então alternava no estúdio com as peças de Reich eram um mundo ainda demasiado majestoso para poder ser traduzido em movimento. Só em 1993, com a estreia de Toccata, a coreógrafa arriscou pela primeira vez trabalhar sobre a música de Bach, uma relação que se foi intensificando nos últimos anos e que cumpre, neste momento, a sua manifestação mais ambiciosa.

Para a criação de Seis Concertos Brandeburgueses foi essencial a sua colaboração prévia com a violinista francesa Amandine Beyer em Partita 2. A reputação de Beyer enquanto especialista no reportório barroco escalou até ao topo com a sua gravação das Sonatas & Partitas de Bach, precisamente, tornando-a uma cúmplice evidente para o trabalho que Keersmaeker e Charmatz desenvolveram em conjunto. “Tive uma belíssima experiência com ela quando estávamos a trabalhar na Partita – e ela é uma violinista brilhante”, comenta a coreógrafa. “É também uma pessoa extremamente generosa e empática na forma como transmite o seu rigor aos músicos.”

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À procura do tom justo que pretendia imprimir à sua dança, Anne Teresa passou incontáveis horas na companhia de Amandine a escutarem as mais variadas versões dos Concertos Brandeburgueses, desde as mais clássicas às interpretações de época, dirigidas por Ton Koopman, Herbert von Karajan, Gustav Leonhardt, Jordi Savall e tantos outros. Após a identificação da abordagem que permitiria a Beyer respeitar “a clareza e a clarividência” emprestadas à música de Bach, o registo foi depois afinado com a B’Rock Orchestra, formação de Ghent que se especializou numa peculiar condição dupla: a aposta em reportório de música antiga, objectivo primeiro que levou à constituição do grupo numa fase em que explodia o interesse pelas interpretações de época, e a enorme predisposição para acolher novo reportório, de música contemporânea.

Há muito disto presente também na coreografia de Seis Concertos Brandeburgueses. Não se tratando de obras tão populares quanto a Sinfonia nº 9 de Beethoven ou Für Elise, de Mozart, reconhece Anne Teresa, este colossal conjunto de música que Bach compôs ao longo de dez anos tem vários assomos de familiaridade para um público alargado. Também a partitura coreográfica da artista belga, mesmo erguida sobre uma linguagem abstracta, não deixa o público desarmado, perdido no meio da complexidade. A riqueza do discurso musical nunca é sequestrada ou subalternizada pela sua familiaridade. Confrontando-nos, num certo sentido – e daí a justeza da alusão à harmonia e aos tempos perigosos –, com aquilo que já sabemos mas que precisamos, repetidas vezes, de ser mais uma vez lembrados.

O Ípsilon viajou a convite da Culturgest

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