De Bach a Coltrane
A obra de Anne Teresa de Keersmaeker tem sido construída numa relação íntima da dança com a música. Se à Culturgest trará a sua paixão por Bach, ao Teatro Rivoli, em Novembro, levará uma coreografia a partir do jazz de Coltrane.
O reputado violoncelista francês Jean-Guihen Queyras nunca foi um grande entusiasta da dança como expressão artística. Entrevistado para o site da ELB Philarmonie, de Hamburgo, confessou que, com frequência, era convidado por amigos para assistir a espectáculos, mas raras vezes encontrava nessas ocasiões qualquer tipo de encantamento. “Não conseguia simplesmente detectar quaisquer ligações satisfatórias entre a música e a coreografia”, resumiu. Até que o compositor Bernard Foccroulle lhe recomendou assistir a qualquer obra de Anne Teresa de Keersmaeker. O feitiço deu-se e Queyras ficou tão impressionado que não demoraria a encontrar-se com a coreógrafa e a porem em marcha Mitten Wir im Leben Sind (excerto de um texto de Martinho Lutero que se encontra grafado na lápide de Pina Bausch), peça estreada em 2017, em que as Suites para Violoncelo de Bach interpretadas ao vivo eram o único motor musical para o movimento fantasiado por Keersmaeker.
Desde o início da carreira que as coreografias de Anne Teresa existem numa relação íntima com a música, não se resumindo a carregar no play de bandas sonoras que poderiam ser trocadas por quaisquer outras sem consequências visíveis. Tendo começado por trabalhar com a música de Steve Reich em Fase, Four Movements to the Music of Steve Reich – de que faz parte Violin Phase, primeira incursão na obra de um autor a que regressaria em Drumming (1998) –, a criadora belga começava por construir uma linguagem ancorada em padrões repetitivos e minimalistas, servindo-se da música sem deixar que esta a limitasse. Em Fase, precisamente, música e movimentos começavam síncronos e, aos poucos, “desencaixavam”, criavam fricções, transformavam-se noutros padrões e alcançavam lugares consideravelmente diferentes dos iniciais.
Com o trabalho que passou a desenvolver, entre 1992 e 2007, à frente da companhia Rosas enquanto companhia residente do teatro de ópera De Munt / La Monnaie, em Bruxelas, foi-se também aproximando de uma exploração geométrica e contrapontística que a empurrava, sem grandes hesitações, para a obra de Bach. Para a criação desse primeiro encontro entre a coreógrafa e o compositor alemão, Keersmaeker estudou em profundidade as características fundamentais das danças barrocas, a fim de, uma vez mais, dotar a sua dança de uma linguagem permeável ao instinto mas sem deixar de ser bastante documentada, usando esse material o estudo para nele entrar e sair livremente. Foi assim com Toccata (1993). E só voltou a ser, no que diz respeito a Bach, quando criou Zeitung (2008), numa assumida tentativa de intersecção entre os códigos da música e da dança. Aí, recorria a Bach, mas também a dois arautos da chamada “segunda escola de Viena”, Webern e Schönberg – compositor que já antes visitara em Verklärte Nachte (1995).
Foi já depois, no entanto, da sua frutífera colaboração com o ensemble de música contemporânea Ictus que Anne Teresa de Keersmaeker fez de Bach uma presença recorrente na suas criações. Após o delicado e luminoso dueto com Boris Charmatz (Partita 2), Mitten e Seis Concertos Brandeburgueses são, na verdade, as grandes e mais enfáticas declarações de amor da coreógrafa pela obra de Bach. Se em Zeitung uma das coordenadas a explorar era já a relação da dança com a improvisação, esse vector criativo de Anne Teresa foi desenvolvido com um outro fôlego ao associar-se, naturalmente, a temas colhidos no universo do jazz. Primeiro, foi a vez de Bitches Brew / Tacoma Narrows (2003), a partir da música de Miles Davis (mas também da música indiana); depois, as mesmas variações jazzísticas/indianas serviram de alimento a Raga for the Rainy Season / A Love Supreme (2005) e Desh (2005), ambas assentes em música de Coltrane (A Love Supreme e India).
A Love Supreme, na sua nova versão redimensionada por Keersmaeker e Salva Sanchis (um dos primeiros alunos formados pela escola PARTS, fundada pela coreógrafa em Bruxelas em 1995) de nove para quatro bailarinos e que deixou cair a primeira metade do título, terá estreia nacional no Teatro Rivoli, Porto, a 1 e 2 de Novembro. Terá mesmo sido o dia-a-dia na PARTS a aproximar a criadora do jazz e através dos professores chamados a leccionar na escola, carregando consigo formações bastante distintas, que foi ganhando interesse pelo recurso à improvisação como atalho para a exploração de novas linguagens coreográficas. Aquilo que então fascinou Keersmaeker no album de Coltrane foi o espaço deixado para a improvisação sem, no entanto, rejeitar a existência de uma estrutura. Nesta nova versão da peça, cada um dos bailarinos (José Paulo dos Santos, Bilal El Had, Jason Respilieux e Thomas Vantuycom) assume o papel de um dos músicos do quarteto clássico de Coltrane: o próprio saxofonista, o pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e o contrabaixista Jimmy Garrison.
E para nos confirmar que a inquietude habitual na sua relação com a música permanece intocada, Anne Teresa de Keersmaeker anunciou já que em Dezembro de 2019 estreará em Nova Iorque, na Broadway, uma nova abordagem a West Side Story, com encenação de Ivo van Hove. Ou como a música continua sempre a seduzi-la e a pedir-lhe que repense toda a sua linguagem coreográfica.