Mediterrâneo é um “ponto quente” das alterações climáticas
A região do Mediterrâneo vai aquecer mais do que a média global. Conter a temperatura do planeta em 1,5 graus pode contribuir para atenuar a gravidade de alguns fenómenos, diz o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, mas o impacto do aquecimento vai continuar a fazer-se sentir.
Mais dias quentes, ondas de calor, períodos de seca e incêndios e menor volume de água nos rios. Algumas destas alterações já se sentem na pele no Sul da Europa, mas, à medida que a temperatura aumentar, vão intensificar-se. As conclusões fazem parte do último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa) divulgado na última segunda-feira.
No documento, o IPCC descreve o Mediterrâneo como um “ponto quente” (hotspot) no fenómeno das alterações climáticas. Por um lado, porque é uma das regiões para a qual se projecta um aumento mais intenso das temperaturas quentes extremas ao nível local quando comparadas com a média global. E, por outro lado, porque se prevêem “reduções substanciais” na precipitação e, paralelamente, mais períodos de seca.
O professor do Departamento de Engenharia Geográfica, Geofísica e Energia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Ricardo Trigo, tem estudado os fenómenos de secas, ondas de calor e incêndios associados às alterações climáticas. “Sabemos que, principalmente para as ondas de calor e incêndios, já há uma contribuição significativa das alterações climáticas nas últimas décadas.” O que é que isso significa? “Quando tentamos reproduzir o clima e a frequência das ondas de calor dos últimos 20 anos, só o conseguimos fazer se incluirmos os gases com efeito de estufa nos modelos”, explica o investigador português.
Porém, os impactos do aquecimento no Mediterrâneo podem ser atenuados se a temperatura média global não for além dos 1,5 graus Celsius em relação ao período pré-industrial — em vez de dois graus (até 2100), como demonstra o relatório do IPCC. No caso do volume de água dos rios, por exemplo, a mediana anual pode ficar-se por uma perda de 9%. Mais meio grau e as perdas no escoamento dos rios sobem para 17%. A mesma coisa com a disponibilidade hídrica e a subida do nível da água do mar: serão menos graves se a temperatura subir 1,5 graus Celsius.
“Se mantivermos o aquecimento global a 1,5 graus Celsius, isso significa que o Mediterrâneo vai manter-se na variabilidade dos últimos dez mil anos. Se aumentarmos dois graus, vamos ter situações que nunca existiram nos últimos dez mil anos”, avança Wolfgang Cramer, director científico no Instituto Mediterrânico de Biodiversidade e Ecologia (em Aix-en-Provence, França) um dos autores do relatório do IPCC — em 2016 o cientista estudou o impacto da subida global da temperatura no Sul da Europa.
Na prática, detalha este cientista, a “Península Ibérica e África podem sofrer mudanças severas na vegetação e nas possibilidades para a agricultura”. Preocupa-o também o aquecimento do mar Mediterrâneo. O fenómeno, diz, “vai ter impacto nos ecossistemas” e pode levar à “invasão por peixes tropicais que competem com espécies autóctones”.
Onde Portugal perde, há países que ficam a ganhar
A única referência directa feita a Portugal em todo o relatório prende-se com a redução da capacidade de produção de energia hidroeléctrica. Segundo o IPCC, ao “comparar os impactos de 1,5 e dois graus Celsius, constatou-se que o potencial de produção médio aumenta em toda a Europa, menos no Sul. Os países bálticos e escandinavos são os que beneficiam mais. Os efeitos negativos registam-se na Grécia, Espanha e Portugal, embora os efeitos possam ser reduzidos limitando o aquecimento a 1,5 graus Celsius”. O relatório constata que, “nestes países, um aquecimento de dois graus Celsius diminuirá o potencial hidroeléctrico em cerca de 10%, enquanto limitar o aumento da temperatura a 1,5 graus Celsius manterá a redução em 5% ou menos” — ainda assim, a grande amplitude dos modelos climáticos gera “uma incerteza substancial associada a estes resultados”.
Joana Portugal Pereira é uma cientista portuguesa que integra o grupo de trabalho do IPCC sobre mitigação e alterações climáticas e esteve envolvida na produção de dois capítulos do relatório. Sobre a diminuição da capacidade de produção hidroeléctrica explica que, “ao termos verões mais longos e quentes e períodos muito quentes fora de época, há uma redução dos níveis de precipitação ou até uma alteração dos padrões de pluviosidade”. Isto, detalha, “reflecte-se ao nível das hidroeléctricas e na nossa capacidade de produzir [energia]”. Além disso, “deixa-nos mais vulneráveis e dependentes de importações de combustíveis fósseis, carvão e gás natural”.
“Curiosamente, países que estão mais dependentes de hidroeléctricas (Portugal é um deles, mas o Brasil também) acabam por estar mais vulneráveis às alterações climáticas. Isto acontece porque temos uma matriz de produção de energia eléctrica altamente dependente de hidroeléctricas e com a alteração do clima haverá maior flutuabilidade nos padrões de pluviosidade”, nota a especialista em bioenergia.
A solução? “Diversificar a rede de energia eléctrica para soluções mais estáveis. Energia solar, eólica, baterias”, lança a cientista portuguesa. “Uma das conclusões-chave do relatório é que, se queremos aumentar a nossa resiliência, temos de expandir os nossos leques de opção.”
O turismo é outro dos sector onde o Sul da Europa sai a perder, demonstra o IPCC. Com base na análise do conforto dos turistas no Verão e na Primavera, grande parte da Europa ocidental pode ser favorecida pelo aquecimento de 1,5 graus Celsius. Excepção feita para Espanha, Chipre (decréscimo de 8% e 2% de dormidas, respectivamente) e outras regiões costeiras do Mediterrâneo. Espera-se um comportamento semelhante caso o aumento de temperatura em relação ao período pré-industrial seja de dois graus Celsius.