Não é um lobo; é uma matilha
Os países e regiões do mundo que têm a sorte de ainda não terem sido devorados devem defender-se da ameaça. E para isso devem usar dos meios que sabemos poderem dar certo.
O argumento mais eficaz, e ao mesmo tempo o mais pernicioso, contra a necessidade de nos mobilizarmos num estado de alerta antifascista para agora, para já, para ontem, é a história de Pedro e o Lobo. Sim, a fábula do rapaz que gritava “vem aí o lobo!” para chamar a atenção dos aldeões e que, quando um lobo apareceu mesmo, acabou devorado porque ninguém apareceu em seu auxílio. A história é eficaz porque parece plausível; e é perniciosa porque, quando não é plausível, é um escancarado convite à passividade, à negligência e à mais pura irresponsabilidade.
Infelizmente não há nenhuma fábula em que os lobos vão aparecendo na aldeia e sendo identificados por pessoas tidas por alarmistas. Seguem-se discussões zoológicas intermináveis sobre o que é ou não um lobo, que pelagens usam, como se comparam com os lobos de há três gerações atrás, se é melhor deixá-los assumir forma humana e falarem às massas, se não seria até melhor eleger um deles para presidente da junta. Talvez seja melhor ter um lobo a governar aqui a nossa aldeia para afastar os pombos. Ou as pombas. E eleger outro ali. E outro acolá. Cada aldeia elege o seu lobo, cada vez menos subtil, cada vez mais descarado.
É de facto uma pena não haver uma história assim. Sendo que por acaso até há. Chama-se “História do Século XX”. Ainda há nas bibliotecas, ou melhor, ainda há nas bibliotecas que ainda há.
Como já perceberam, só superficialmente esta história é sobre um tema fascinante: se se pode ou não chamar fascistas aos Putins, Erdogans, Orbáns, Kaczinskis, Dutertes, Trumps e Bolsonaros deste mundo (e sim, senhor primeiro comentador que me perguntar da Venezuela, Maduro é um desprezível ditador, embora de outra tradição mais próxima da minha família ideológica, a esquerda, que infelizmente também tem muitos tiranos de que se envergonhar).
Mas a discussão é tão fascinante quanto fútil, desde que a palavra “fascista” apareceu com um sentido restrito, que se aplica à Itália de 1920, e um sentido lato, que se aplica aos autoritarismos nacionalistas de extrema-direita. Se não quiserem chamar-lhes fascistas, chamem-lhes lobos cada vez menos preocupados em usar pele de cordeiro. O que interessa é se somos capazes de identificar e denunciar corretamente a sua fome de poder.
A primeira vez que escrevi sobre Orbán foi no Verão de 2010. Ele tinha acabado de introduzir uma lei de imprensa na qual uma comissão nomeada pelo seu governo estava pronta a aplicar multas draconianas sem processo judicial a jornais de oposição. Desde então a Constituição foi mudada uma vintena de vezes e a lei eleitoral alterada para lhe garantir sempre uma maioria de dois terços... para poder mudar a constituição sempre que quiser. Alguma vez deixou de ser lobo desde o primeiro aviso?
Sobre Erdogan escrevi antes, no Natal de 2009 e na Primavera de 2010, quando um azarado sindicalista e sociólogo (casado com uma curda) passou 18 meses na prisão porque um livro seu foi encontrado na biblioteca de um terrorista. Hoje Erdogan tem centenas ou milhares de jornalistas e intelectuais na prisão. Alguma vez deixou de ser lobo desde o primeiro aviso?
E Trump? Prometeu construir muros, deportar gente, iniciar uma guerra comercial e nunca mostrar a sua declaração de impostos. Agora domina o Supremo Tribunal e fala em autoperdoar-se se as investigações contra ele descobrirem algum crime. Há crianças em campos de detenção e — sinal de alarme para quem conheça história — ameaças de retirar a nacionalidade a certos americanos chegados como imigrantes. Trump está só no início. Acham que um dia destes vai deixar de ser lobo?
Poderíamos dizer o mesmo de Putin, Kaczinski ou Duterte. Até agora, nenhum aviso falhou, nenhum “alarmista” estava errado, nenhum lobo se revelou democrata. Vamos continuar a fazer de conta que está tudo bem? Vamos continuar mais preocupados com Pedro do que com os lobos?
Enquanto escrevo, ignoro o resultado das eleições brasileiras. Não sei se Bolsonaro ganhou já ou se o Brasil vai ter ainda três semanas para se salvar a si mesmo — e ao mundo — de mais uma eleição em que a aldeia é tomada pelos lobos, e ainda por cima à descarada. Bolsonaro diz tranquilamente em frente às câmaras que o seu ídolo é um torturador, que a ditadura matou foi pouco, que uma mulher só não merece ser violada se for feia, que as minorias têm de vergar-se às maiorias, etc. Alguma vez vai deixar de ser lobo?
Sei apenas de uma coisa: que os países e regiões do mundo que têm a sorte de ainda não terem sido devoradas devem defender-se da ameaça. E para isso devem usar dos meios que sabemos poderem dar certo.
Em primeiro lugar, reconhecer que há uma ameaça. É certo, tem especificidades aqui e acolá, mas é uma ameaça global. Longas discussões sobre se estaríamos a ser “demasiado alarmistas” não ajudaram os húngaros, turcos ou filipinos. O alarme a tempo teria ajudado mais.
Em segundo lugar, informação e educação. Ensinar mais história, direito e política. Começar na escola a aprender como distinguir entre informação falsa e verdadeira, verificação de fontes, pensamento crítico e método científico.
Em terceiro lugar, a união entre democratas. A discussão de se o fascismo nasceu dos erros do centrismo (como dizem nos EUA) ou do esquerdismo (como dizem no Brasil) será muito interessante para uma noite de copos na boémia intelectual quando isto tudo tiver passado. No imediato, é preciso que a esquerda, centro e direita democráticas se unam contra os fascistas — chamem-lhes o que chamarem. Claro que esquerda, centro e direita são diferentes — e ainda bem. E claro que cometeram erros. Mas nada justifica esgotarem reciprocamente as suas forças enquanto a aldeia é devorada pelos lobos. Sim, no plural.
Porque esta não é a história de Pedro e o Lobo. É a história da aldeia global e da matilha. E a culpa não é de quem avisou a tempo, mas de quem ainda não deu ouvidos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico