Travis Kalanick: conduzir por atalhos
O livro Visionários, do jornalista do PÚBLICO João Pedro Pereira, conta o percurso de alguns dos inovadores que marcaram a história das tecnologias de informação, desde a II Guerra Mundial até hoje. Chega às livrarias no dia 12 de Outubro. A apresentação está marcada para dia 30, na FNAC Chiado, em Lisboa, e será feita pelo presidente do Instituto Superior Técnico, Arlindo Oliveira.
Talvez aqueles minutos no banco de trás de um Uber tenham sido o tropeção final antes da queda. Travis Kalanick estava bem-disposto. Sentado no lugar do meio, conversava despreocupadamente com as duas mulheres que viajavam com ele. Às vezes, abanava-se ao som da música que saía do rádio do carro. No final da viagem, debruçou-se para apertar a mão ao condutor. E foi neste momento que a conversa começou. Virado para o banco de trás, Fawzi Kamel explicou ao fundador da Uber que era um motorista de longa data. No início, o tom até era amistoso, mas o diálogo azedou rapidamente. Kamel queixava-se de que os preços das viagens tinham caído, o que tornava mais difícil a vida dos motoristas. Isto, argumentava Kamel, era um problema sobretudo para aqueles que, como era o seu próprio caso, tinham investido em carros de gama alta que cumprissem os critérios necessários para fazer parte do serviço Uber Black – é a opção mais cara na aplicação e aquela que está mais próxima do conceito inicial de permitir que qualquer pessoa tenha um carro de luxo e um motorista à disposição. Kalanick ripostou que os serviços mais baratos e os cortes de preços eram necessários para fazer face à concorrência. “Parece fácil porque eu os derrotei. Mas se não tivesse feito as coisas que fiz, teríamos sido derrotados, garanto”, diz Kalanick a dada altura da discussão. Pouco depois, Kamel atira:
— Mas as pessoas já não estão a confiar em si. Acha que as pessoas querem comprar mais carros? (...) Eu perdi 97 mil dólares por sua causa. Estou falido por sua causa. Sim, sim, sim. Continua a mudar todos os dias. Muda todos os dias.
— O quê? O quê? —? Kalanick estava agora claramente irritado.
— Desce os preços. Fez isso. Começámos com 20 dólares...
— Tretas.
— Começámos com 20 dólares. Quanto é a milha agora? 2,75?
Kalanick perdeu as estribeiras.
— Sabe que mais? Algumas pessoas não gostam de assumir responsabilidade pelas suas merdas. Põem a culpa de tudo o que lhes acontece na vida em cima dos outros. Boa sorte. — Saiu apressadamente do carro. Kamel ainda respondeu:
— Boa sorte para si também. Sei que não vai chegar longe.
É possível que Kalanick não soubesse que havia uma câmara ligada a captar toda a conversa. Ou, se sabia, mediu mal as consequências do episódio.
Poucas semanas depois, a 28 de Fevereiro de 2017, Kalanick estava reunido com outros executivos numa sala de um hotel de São Francisco. O tema era delicado. A equipa queria dizer ao fundador e presidente executivo da Uber que a sua postura estava a tornar-se um problema. Por aquela altura, a reputação da empresa — bem como a de muitos dos seus responsáveis e de Kalanick em particular — já não era famosa. As queixas por parte do sector dos táxis, que acusavam a Uber de operar ilegalmente e de destruir os empregos, sucediam-se em vários países — e, em alguns, a Uber tinha mesmo sido impedida de operar. Os próprios motoristas que trabalhavam com a plataforma revoltavam-se pelas más condições laborais e a empresa era já amplamente vista como sinónimo de um trabalho precário e mal pago. No meio de tudo isto, as contas da empresa também não eram um cenário animador: os prejuízos em 2016 tinham sido de 2800 milhões de dólares, sem contar com as operações na China, onde a Uber tinha dificuldade em conquistar mercado. Mas os problemas não se ficavam por aqui. No início de 2017, uma antiga engenheira da Uber publicara online um relato das práticas de assédio de que fora vítima por parte do seu superior e da complacência mostrada pelo departamento de recursos humanos. Aquele texto foi um momento alto nas críticas a uma empresa que começava a ser conhecida pela cultura sexista e tolerante em relação a vários tipos de abusos internos, e também pelas práticas agressivas e legalmente duvidosas no que dizia respeito ao negócio. Em boa parte, isto era fomentado por Kalanick, que deixara de ter a imagem de um enfant terrible do mundo das startups tecnológicas e era agora visto como um gestor irresponsável que cultivava dentro da empresa um ambiente de residência universitária.
A meio daquela reunião no hotel de São Francisco, uma executiva recebe um telefonema e, de seguida, pede a Kalanick para a acompanhar ao corredor. Um outro executivo juntou-se a eles. No ecrã de um computador portátil, Kalanick viu o desfecho inevitável: o vídeo da discussão com Kamel chegara à Internet. “Isto é mau. Eu sou péssimo”, terá reagido um Kalanick desalentado, segundo contou mais tarde um dos presentes. O desânimo não durou. Kalanick mostrou-se determinado a pôr em prática um plano para recuperar a reputação da empresa e a sua própria. No dia seguinte, escreveu um email aos funcionários, que a Uber divulgou publicamente. Pedia desculpas aos trabalhadores e a Kamel, e reconhecia que precisava de “mudar enquanto líder e de crescer”. Também começou à procura de um director de operações, um braço direito que o ajudasse a conduzir uma companhia que se espalhava por muitos países, com diferentes desafios de negócio e legais em muitos deles, e que se orgulhava de permanecer, apesar de tudo, com o espírito de uma startup.
Naquele primeiro semestre de 2017, a Uber desdobrou-se em esforços para melhorar a sua imagem pública e para refazer a cultura interna. Contratou Eric Holder, o procurador-geral dos EUA durante os tempos de Barack Obama, para fazer uma análise aos meandros da empresa e sugerir melhorias (uma delas foi uma redefinição das responsabilidades de Kalanick). Depois de ter revisto 215 queixas relacionadas com assédio, bullying e discriminação, a Uber despediu duas dezenas de funcionários. Mas as tentativas de criar uma nova imagem afundavam-se perante os factos que iam surgindo. Um mês depois de o vídeo de Kamel ter sido publicado online, surgiu a notícia de que o presidente e outros funcionários tinham estado anos antes num bar de alterne em Seul, onde as mulheres apareciam numeradas para que os clientes as pudessem escolher. Kalanick estava acompanhado pela namorada da altura, que foi quem contou o episódio à imprensa.
A situação requeria medidas drásticas. A 12 de Junho, Kalanick anunciou que ia tirar uma licença por tempo indeterminado. Continuaria a participar nas decisões estratégicas, mas deixava a gestão quotidiana para o resto da equipa de executivos. Aos problemas da Uber somava-se ainda uma tragédia pessoal: a mãe tinha morrido num acidente de barco, no qual o pai ficara gravemente ferido. Escreveu então uma mensagem aos funcionários, onde reconhecia que era preciso que tanto a empresa como ele próprio entrassem numa nova fase: “Se vamos trabalhar na Uber 2.0, eu também preciso de trabalhar no Travis 2.0, para me tornar o líder que esta companhia precisa e que vocês merecem.” As coisas não correram como planeado.
Dias mais tarde, Kalanick estava no luxuoso hotel Ritz-Carlton de Chicago, aonde tinha ido para entrevistar um candidato à vaga recente de director de operações, quando recebeu uma visita inesperada de dois representantes de investidores da Uber. Estes entregaram-lhe uma carta com o título “Move Uber Forward” (fazer a Uber avançar). Acusavam-no de má gestão e pediam-lhe que se demitisse do cargo. Os investidores que assinavam aquela carta tinham apenas uns 40% dos direitos de voto na empresa, o que significava que não tinham poder legal para afastar Kalanick. Mas tinha alguns trunfos para jogar: a ameaça de um processo judicial e a garantia de que, se optasse por sair, poderia apresentar a demissão nos seus próprios termos e tentar salvar a face. Kalanick passou as horas seguintes em telefonemas para aliados e advogados. No final, capitulou e assinou os papéis da rendição. Com 40 anos, e ao fim de oito anos conturbados, deixava a liderança de uma empresa que muitos viam como um gigante instável e desgovernado.
*
Travis Kalanick nasceu a 6 de Agosto de 1976 e cresceu nos subúrbios de Los Angeles. Era bom aluno e competitivo, e teve desde cedo uma inclinação para o empreendedorismo. Aos 18 anos lançou a New Way Academy, um serviço destinado aos alunos que se queriam preparar para os exames de admissão à universidade. Entrou na Universidade da Califórnia para estudar informática e gestão, mas depressa desistiu do curso, para lançar, com vários colegas, o Scour, um serviço de partilha de ficheiros, que permitia aos utilizadores passarem uns aos outros ficheiros de música e filmes, de forma semelhante ao Napster. Em 2000, dois anos após ter sido lançada, a empresa foi acusada de violação de direitos de autor e processada numa quantia astronómica. A solução foi declarar falência, o que livrou Kalanick e os sócios de terem de responder em tribunal.
Logo no ano seguinte, criou uma nova empresa, a Red Swoosh, que era essencialmente uma versão melhorada da anterior e dirigida ao mercado das empresas que quisessem disponibilizar conteúdos online. Mas a vida não era fácil. Com o negócio a correr mal, Kalanick tentou vários expedientes para manter as portas abertas. Morava em casa dos pais, esteve anos sem salário e, uma vez, decidiu não entregar o dinheiro do IRS dos funcionários, mesmo sabendo que era uma prática ilegal. Foi investigado pelas Finanças e o dinheiro acabou por ser foi devolvido. Em 2006, já em melhores condições financeiras, pegou nos funcionários e assentou arraiais na Tailândia durante umas semanas, para que não caíssem na rotina. Os esforços acabaram por compensar. Em 2007, a Akamai, uma empresa que vende serviços para armazenamento e distribuição de conteúdos online, comprou a Red Swoosh por cerca de 19 milhões de dólares. Não foi um negócio gigantesco, mas foi mais do que suficiente para livrar Kalanick dos problemas financeiros. A 30 de Dezembro de 2008, Kalanick publicou um texto no seu blogue (era um tempo em que as redes sociais ainda não tinham grande importância), no qual resumiu os tempos da Red Swoosh:
“Em seis anos a gerir a Red Swoosh, estive mais de três sem salário. A necessidade ensinou-me a arte delicada do autofinanciamento. Sangue, suor e RAMEN [um caldo com massa e, por vezes, carne e legumes, que é muito popular no Japão] é o que gosto de lhe chamar. Estava sempre a pensar em como fazer as coisas de forma ultra-barata, hiper-eficiente, e ficar bem na fotografia.”
*
A ideia para o que viria a ser a Uber nasceu em 2009, pela mão do empresário canadiano Garrett Camp, que lançara anos antes um serviço de descoberta e recomendação de sites chamado StumbleUpon. Hoje, a Uber apregoa os seus benefícios enquanto complemento da rede de transportes das cidades e também se apresenta como parte da chamada “economia da partilha”. Trata-se de um conceito em que pessoas com recursos excedentes os disponibilizam temporariamente, através da Internet, a terceiros dispostos a pagar por isso. Estes recursos podem ser carros, casas ou lugares de garagem. Esta ideia de partilha é uma descrição benévola, e incorrecta, de muitos destes serviços. Como sabe qualquer pessoa que tenha usado o Airbnb, muitos alojamentos são negócios profissionais, muitas vezes geridos por empresas, e não um quarto vago na casa de um simpático anfitrião local. Também na Uber os motoristas tendem a ser profissionais, e não pessoas que dedicam umas horas a transportar outros no seu próprio carro, numa espécie de part-time. Estes conceitos permitem às equipas de relações públicas contar boas histórias em torno dos serviços da Uber. Mas a ideia original nada tinha a ver com o conceito de partilhar o carro próprio. O objectivo era resolver um problema muito concreto: os carros privados com motorista eram caros. Como em tantas outras coisas, a tecnologia poderia embaratecer o serviço. Bastava encontrar um meio de fazer com que o tempo dos motoristas fosse mais bem aproveitado, o que implicava dividi-lo da forma o mais eficiente possível entre vários clientes, em vez de ter alguém contratado para uma noite inteira e que, na verdade, só passaria umas horas a conduzir. Garrett Camp financiou ele próprio a ideia para o novo serviço, recrutou Kalanick como consultor e braço direito, e a UberCab começou a funcionar em 2010, em São Francisco. “Uber” é um prefixo usado para designar algo extraordinário e superior, e o nome foi escolhido para sublinhar as vantagens de usar o serviço em vez de um táxi convencional. Também por esta altura, Kalanick e a namorada (de quem entretanto se separou) compraram uma casa em São Francisco, onde organizavam frequentemente encontros com empreendedores e outras figuras do sector. A casa tinha uma conta no Twitter, com o nome JamPad e com a descrição “A igreja do capitalismo criativo”.
Camp e Kalanick precisavam de alguém para assumir o cargo de presidente da UberCab. Depois dos anos na Red Swoosh, Kalanick disse que queria descansar da vida de gerir uma startup a tempo inteiro. Fez um apelo no Twitter a potenciais interessados e acabou por contratar Ryan Graves, então com 27 anos. Três meses depois, Kalanick mudou de ideias e decidiu assumir ele próprio a função. Graves foi despromovido para vice-presidente, mas teve um papel de relevo na empresa até sair, em 2017. Com Kalanick ao volante, a Uber — que foi proibida pelas autoridades de São Francisco de ter a palavra “cab” (táxi) no nome — foi crescendo. Primeiro, nos EUA, onde começou por se expandir para Nova Iorque e Chicago. Depois, no resto do mundo, com Paris a ser a primeira cidade não americana com o serviço disponível. Em Junho de 2012, chegou às estradas a concorrente Lyft. Logo no mês seguinte, a Uber lançou o Uber X, uma versão mais barata do serviço, com carros de gama mais baixa e preços que competiam com os dos táxis. Desde então, a plataforma desmultiplicou-se em serviços e funcionalidades, embora nem todas existam em todos os países. Há opções para partilhar o carro com outros em trajectos comuns e a possibilidade de chamar apenas carros eléctricos. O serviço UberEats faz entregas de comida ao domicílio. A empresa também começou a apostar nos carros autónomos e comprou a Otto, uma empresa de camiões criada por ex-funcionários do Google e que já são capazes de andar sozinhos em auto-estrada. Também está a desenvolver veículos voadores eléctricos e não tripulados (as primeiras versões terão um piloto), que poderão transportar pequenos grupos de pessoas. Os primeiros voos de demonstração estão agendados para 2020 e deverão ficar-se, nessa fase, por apenas duas cidades americanas: Dallas e Los Angeles, que é conhecida pelos problemas de trânsito.
A Uber e Kalanick não se coibiram de seguir por alguns atalhos para ganhar vantagem sobre os táxis, sobre as outras plataformas semelhantes e, também, sobre as autoridades. Durante anos, a empresa usou secretamente uma ferramenta chamada greyball para iludir agentes de autoridades em vários países. Aquela ferramenta permitia identificar os telemóveis que seriam de agentes (nomeadamente, verificando se a localização coincidia com a das instalações das autoridades para as quais estes trabalhavam) e fazia com que a aplicação da Uber lhes mostrasse informação falsa. A empresa também usou uma técnica chamada fingerprinting, que lhe permitia continuar a identificar iPhones mesmo depois de a aplicação ter sido apagada. O objectivo era combater uma fraude na China, onde muitos condutores usavam iPhones para instalar a aplicação e criar contas falsas de utilizador, fazendo depois pedidos de carros. Como a Uber dava incentivos aos motoristas apenas por aceitarem um pedido, estes aceitavam os pedidos falsos e ganhavam dinheiro com isso. Porém, a prática violava as regras a que estão obrigadas as aplicações que são distribuídas pela loja da Apple. Por isso, a Uber usou técnicas de geolocalização e fez com que o código informático responsável por manter a identificação dos iPhones não fosse mostrado quando o software estava a ser examinado por técnicos que se encontrassem na sede da Apple. A trafulhice foi descoberta e valeu a Kalanick uma reunião pouco amistosa com o presidente da Apple, Tim Cook.
*
A demissão de Kalanick na sequência do ultimato que os investidores fizeram no hotel de Chicago não correu como esperado. Em vez de uma saída digna, a imprensa rapidamente reuniu boa parte dos factos por trás da decisão e deu a conhecer o que afinal tinha acontecido: uma saída forçada por accionistas que temiam pelos seus investimentos e que não viam em Kalanick uma pessoa capaz de gerir a Uber. De fora, mas com uma importante posição accionista, o fundador ainda tentou influenciar os destinos da empresa e exerceu o seu direito de nomear dois membros do conselho de administração, no que foi visto como uma afronta pelos novos gestores da empresa. Foram publicadas notícias a dar conta de que, em privado, Kalanick planeava seguir o exemplo de Steve Jobs, que voltou à Apple depois de ter sido despedido para a salvar de uma situação difícil e acabou a transformá-la numa das importantes empresas tecnológicas deste século.
Em Março de 2018, contudo, Kalanick anunciou um fundo para investimentos no sector do imobiliário, do comércio electrónico e da inovação na Índia e na China. Nesse mesmo mês, investiu 150 milhões numa empresa chamada City Storage Systems, que recupera imobiliário para fins industriais e comerciais. Com uma posição maioritária na pequena startup de 15 pessoas, assumiu o cargo de presidente.
Só com o passar dos anos se perceberá se aquelas notícias são verdadeiras e se Kalanick tem mesmo um grande plano para voltar aos comandos da Uber. Por agora, deixa como legado a criação de uma empresa que se tornou um gigante mundial e que transformou o conceito de mobilidade em muitas cidades. Mas que tem também um lado muito mais escuro, assente na procura da eficiência extrema que caracteriza muitos dos usos recentes das tecnologias de informação. O termo “uberização” é usado hoje para designar uma vaga de aplicações que permitem a qualquer pessoa invocar, com uns toques no ecrã, os préstimos de todo o tipo de biscateiros mal pagos.
O maravilhoso mundo novo da tecnologia não é maravilhoso para todos.