Construção da memória dos dias do Nobel, os “dias do caos”
Como foi o dia 8 de Outubro de 1998 e os que se seguiram? Um País Levantado em Alegria, do jornalista Ricardo Viel, é uma viagem aos bastidores de um Nobel que não quis ser apenas literário.
Há uma carta de José Saramago a Eduardo Lourenço onde está mais ou menos explicada a génese e a pretensão dos Cadernos de Lanzarote. “Cansei-me de dizer que os Cadernos não aspiravam a mais que a fixar a passagem do tempo; podiam ser, por exemplo, uma gravação de vídeo, mas sendo eu tão pouco dotado para as artes da imagem (...) e, tendo algum jeito para a escrita, pareceu-me que não iria infringir nenhuma regra de comunicação escrevendo um diário sem mais pretensão que essa mesma: reter os dias, fotografá-los (...) para poder voltar a eles quando me apetecesse e ter assim a ilusão de haver vivido muito. E essa é realmente a impressão que recebo quando leio o que escrevi então e vou escrevendo agora: que a memória entregue a si mesma, não retém quase nada do que acontece. E nem sequer vale a pena argumentar que retém quase nada do que mais importa...”
Quando a 8 de Outubro de 1998 ganha o Prémio Nobel da Literatura, José Saramago deixa de sentir o tempo da mesma maneira, tudo se altera no modo como encara a literatura e o seu próprio processo de escrita. Ao contrário do que acontecera nos anos anteriores, deixa de haver o registo dos dias. Em particular aqueles dias que se seguiram ao anúncio do primeiro Nobel — e até agora único — para um escritor de língua portuguesa.
Nesse dia, Ricardo Viel estava no Brasil, onde vivia. “Estava a preparar-me para entrar para a faculdade. Lembro-me da notícia, de ficar feliz. Acho que no Brasil desde o princípio se encarou aquilo como um prémio para a língua portuguesa, mas eu não vivi essa alegria.” A trabalhar na Fundação José Saramago, com acesso ao espólio do escritor, decidiu ir à procura do que foram esses dias. Pilar del Río gostava que esse relato fosse feito por alguém que estivesse a fazer uma descoberta e que isso repassasse no resultado final.
A narração dos detalhes, os pormenores que escaparam à maioria das pessoas, os bastidores, uma certa intimidade, eram importantes. O trabalho de Ricardo Viel era o de investigar para escrever uma espécie de reportagem, recuar 20 anos e olhar para 1998 com um olhar virgem, regressando a 2018 para contar como foi. O seu testemunho é o testemunho do impacto do Nobel.
A narrativa começa a 2 de Outubro, quando um português em Estocolmo transporta consigo uma pasta com um segredo. O nome do Nobel daquele ano. A sua função é trabalhar para que a notícia chegue à hora exacta ao destinatário certo. Uma espécie de contra-relógio estava a contar. E é essa a cadência da escrita que se segue. Ritmada, alternando factos, testemunhos, escritos, entrevistas, a correspondência de Saramago guardada na Fundação.
Um País Levantado em Alegria, título retirado de expressão de Eduardo Prado Coelho, é o nome do livro de Ricardo Viel que será posto à venda em conjunto com o Último Caderno, no mesmo dia. Em Portugal e em Espanha. Um e outro livro têm existência autónoma, mas o de Viel funciona como um complemento ao VI Diário de Lanzarote, o subtítulo do livro agora descoberto e editado quando passam vinte anos sobre o Nobel da Literatura a José Saramago.
“Eu não tinha ideia”, refere o jornalista. “Pelo que falei com as pessoas parece que foi um momento meio mágico.”
Não se trata de uma memória, mas da construção de uma memória por quem não viveu esses tempos em Portugal. “Eu era bastante jovem e nem era um leitor de Saramago. Acho que só tinha lido o Ensaio Sobre a Cegueira. Para as pessoas que viveram isso, o livro pode ser interessante para relembrar, para recuperar um pouco essa memória, mas para pessoas que não viveram isso como eu é um descobrimento. Ver as frases que Saramago dizia, e cada coisa tão certeira. Cita cartas de leitores e em particular as de António Mega Ferreira e Eduardo Lourenço. Na primeira lê-se: “Ver um homem feliz é o maior espectáculo do mundo, o mais comovente e o mais excitante.” Lourenço refere uma espécie de milagre para classificar o que aconteceu com a vida e a carreira de Saramago e escreve: “De hoje em diante haverá um ‘mito Saramago’, como existe em torno de Fernando Pessoa, que, como todos os mitos, não tem tanto a ver com o valor das respectivas obras, mas com o vazio que vêm preencher no nosso imaginário universal.”
Viel está sentado próximo do lugar onde reviu o livro enquanto Piar del Río o traduzia para castelhano. Aqui a tradutora foi ela, que o ajudou a seleccionar cartas, sobretudo a descodificar nomes que ele não conhecia. Como a de Maria de Lurdes Pintasilgo, por exemplo, que quase foi parar ao lugar das cartas de anónimos. Os dois riem. “Ao ler tudo o que foi dito e escrito, e como se Saramago fosse uma personagem criada por ele próprio”, sublinha Ricardo Viel, que insiste na solidão do anúncio. “A maneira como é dada a notícia, de repente ele está sozinho, uma coisa tão perfeita que parece irreal.” Uma frase a remeter para a introdução, ou o princípio de tudo desde que o tempo começou a contar, faz vinte anos. No dia 8 de Outubro de 1998, minutos depois de receber a notícia de que o Prémio Nobel de Literatura lhe havia sido atribuído, José Saramago viu-se só, num imenso corredor de um aeroporto. Estava longe da companheira, muito distante da sua casa, do jardim onde passava os finais de tarde rodeado dos cães, e foi invadido por uma “solidão agressiva” que nunca havia sentido.
“Deram-me o Nobel, e o quê?”, diz que pensou, naquele momento, o escritor português. E percebeu que a alegria vinda com a notícia fora encoberta pelo facto de não ter com quem partilhar aquela conquista.