Alexander McQueen: como filmar um hooligan com uma agulha

O que fica depois do fogo: McQueen é o documentário que chegou perto demais da chama de Alexander McQueen. No fim, haverá lágrimas.

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Ann Ray

Alexander McQueen era um hooligan com uma agulha. Lee McQueen era um refém da sua insegurança. McQueen, o documentário que se estreia em Portugal esta semana, é um encontro entre os dois, entre um corpo e a projecção pública de uma identidade. Lee Alexander McQueen é um dos mais importantes, e seguramente dos mais interessantes, criadores de moda de sempre. Era afinal um artista, e este documentário afinal é um filme. Em itálico.

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“Destruir o mito e devolvê-lo ao lado humano”: eis como o realizador Ian Bonhôte descreve o seu filme Rui Gaudêncio

“Sempre quisemos fazer um filme”, diz ao Ípsilon Ian Bonhôte, com toda a ênfase de um realizador entusiasmado na última palavra. “O problema de muitos documentários é que caem pelo buraco da informação. No nosso caso queríamos dar corpo a alguém. Destruir o mito e devolvê-lo ao lado humano.”

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Para o ser humano Alexander McQueen, o barro era o corpo e o molde era o grotesco. Trabalhava sobre a destruição da beleza ou a beleza da destruição Gary Wallis

O mito Alexander McQueen é uma caveira ornamentada, uma Kate Moss desorientada numa passerelle onde também há uma modelo-incubo dentro de uma caixa de vidro, é um casaco de penas de ouro digno de uma rainha ou umas calças a cair rabo abaixo. Mas o corpo Lee Alexander McQueen, “um filho de um taxista, um miúdo da classe trabalhadora”, é a primeira coisa que vemos em McQueen, cuja realização Bonhôte divide com Peter Ettedgui (produtor de Listen to Me Marlon).

É a sua versão home video, sem polimento, descontraído, roliço, tímido, com grão. A voz e o sotaque soam a personagem de Little Britain. “Parecia um skinhead”, diz-se a certa altura sobre o rapaz de cabelo rapado e botas pesadas que entrava pelos salões da moda, “muito maltrapilho”, como lembrava carinhosamente a sua mentora na famosa escola Central Saint Martins, Bobby Hillson. Perto da sua morte – do seu suicídio, a 10 de Fevereiro de 2010, dois dias depois da morte da mãe e na véspera do seu funeral -, era menos Lee e mais Alexander, magro e isolado, autor de grandes desfiles e encenações como apoteótica e derradeira Plato’s Atlantis, um homem que passou pela Givenchy e pelo corpo de milhares de mulheres que queria empoderar.

A sua história é um clássico contemporâneo e os muitos ingredientes, da descoberta e amizade da editora de moda Isabella Blow à aprendizagem com os alfaiates de Saville Row, passando pela glória nas alturas de ser aceite pelo elitista sistema da moda, fazem parte da sua lenda. Rags to riches, literalmente, partiu de uma base improvável para se tornar referência incontornável. Na sua morte, nas duas exposições Savage Beauty no Metropolitan de Nova Iorque e no Victoria & Albert de Londres, nos livros Blood Beneath the Skin ou Gods and Kings que as rodearam, e agora por ocasião da estreia de McQueen, a lenda vive. E as histórias repetem-se.

“Sem educação formal”, não tinha referências – “para ele uma pintura, um livro, era tudo novo”, recorda-se no documentário. McQueen cresce perante os nossos olhos, mas revela-se sobretudo nas vozes de quem com ele conviveu, graças às escolhas de Bonhôte e Ettedgui. Tiveram acesso a horas de filmes caseiros, familiares e dos amigos da era de ouro, e focaram-se: “the McQueen tapes” à mistura com as colecções como a perturbadora VOSS, Jack the Ripper Stalks his Victims ou Highland Rape a servir de guia.

Esta é a estreia na realização de uma longa para Bonhôte, autor de um par de curtas e vindo de uma carreira na publicidade. Quando se fala de quão emotivo é o documentário McQueen com Ian Bonhôte, ele entrecorta logo: “É o objectivo”.

No final do desfile de Primavera/Verão 1999, a modelo Shalom Harlow veste um volumoso vestido branco. Gira no meio do fogo cruzado de dois braços robóticos serpenteantes, que disparam tinta sobre ela. Ao fundo, num cantinho nos bastidores, Alexander McQueen espreita para a passerelle. Chora pela primeira vez num desfile.

É mais uma imagem com grão, de mais um pedaço do corpo do designer britânico, e uma obra de mineração dos realizadores. “Quando estávamos a vasculhar os arquivos vimo-lo lá ao fundo, reconhecemos a camisa, porque ele estava tão pequenino. Não há um plano assim dele, fizemos um grande zoom. E isso conta a história de como quisemos fazer o filme: ver a emoção. Na sala de montagem escrevemos no nosso quadro: ‘Emotion over information’ [“emoção acima de informação”]. E tudo o que só fosse portador de informação, deitámos fora.”

A destruição da beleza, a beleza da destruição

A sua intenção nunca foi fazer um fashion film e isso nota-se – por mais que sejam hoje um género e uma pequena indústria, muitas vezes ficam presos às marcas e a uma relação e mensagem institucional. “Trabalhei muito tempo em publicidade e não me mudei para o cinema para fazer um brand film”, diz rapidamente num bar de hotel lisboeta. Inspiraram-se mais “em Pina, de Wim Wenders, Amy, sobre Amy Wineshouse, e sobretudo Senna, depois do qual ninguém veio falar de um género petrolhead [fanáticos de carros], era um filme sobre um ser humano e sua rivalidade com Alain Prost”.

Para o ser humano Alexander McQueen, o barro era o corpo e o molde era o grotesco. Trabalhava sobre a destruição da beleza ou a beleza da destruição. “Sabotagem e tradição, beleza e violência”, viu Isabella Blow na sua colecção de estreia de 1992.

Os dois realizadores voaram perto da chama de McQueen, como traças atraídas pela chama. Quiseram ir à descoberta de um artista, sem que nenhum deles tenha conhecido Lee Alexander McQueen. Mas “se se era um jovem criativo em Londres, não se lhe escapava”, lembra Bonhôte. “Ele é muito para além de tecido, material, temporadas, cores, tendências. É emoção, é história, é biografia, é obscuro porque ele próprio o disse: ia ao lado negro da sua alma e tirava estas imagens e punha-as na passerelle.”

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Ia ao lado negro da sua alma e tirava imagens que punha na passerelle Antonio de Moraes Barros Filho/WireImage

De colecção em colecção, a vida vai seguindo. As capitais da moda são suas, toca nas estrelas. Mas dele não falam no filme os seus amigos célebres como Kate Moss, os seus clientes estrela como Sarah Jessica Parker. A ausência de uma Madonna é presença da pungência. “Desde o primeiro dia quisemos evitar o que chamamos ‘os comentadores’. Os historiadores, capazes de falar de quão maravilhosos são [os biografados], mas que não os conhecem. Não precisávamos dos suspeitos do costume. Se tivéssemos uma única Anna Wintour ou uma Suzy Menkes, isso teria distanciado o espectador”, diz Bonhôte sobre as papisas da Condé Nast.

Ao invés disso temos a irmã Janet, cujo marido abusou dela e do próprio McQueen, o sobrinho e discípulo Gary, os amigos da primeira hora e os que só os bastidores dos desfiles e dos ateliers reconhecem. “Janet tinha mais 13 anos do que ele e quase o criou. O marido dela violou-o. Ela não sabia. Ela carrega essa culpa. O facto de ter aceitado passar quatro horas a dar-nos tanto dele faz-nos sentir que tínhamos uma grande responsabilidade”, suspira Ian Bonhôte.

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No fim, recorde-se, haverá lágrimas, e eles estão ali para “partilhar algum do fardo e alguns daqueles segredos obscuros”, descobriu o realizador. Refere-se sempre a Alexander McQueen, nome de marca, como Lee, nome de casa. Houve quem se zangasse – a própria Janet McQueen, “é tão como o Lee, uns dias odiava-nos, noutros estava fixe connosco” -, houve quem expiasse alguma dor. “A certa altura é algo tão negro, como se estivéssemos num poço e não há luz. Lee nunca lidou com os grandes assuntos da sua vida, ter sido abusado, mas mesmo ter sido um rapaz gay gordo. Acho que nunca se aceitou verdadeiramente, ao seu aspecto.” 

Como se filma Alexander McQueen quando já tanto se sabe dele? Indo com ele. “Ele encontrava a beleza no escuro, encontrava o belo no feio. Não havia cool com o Lee.”

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