(Re)animar a democracia

As condições sociais e políticas que observamos no Brasil não são equiparáveis ao contexto português, principalmente no que se refere às desigualdades sociais e à violência, mas é importante que nos mantenhamos alerta, e parece-me que em Portugal os fenómenos norte-americano e brasileiro não passaram despercebidos.

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Nuno Ferreira Santos

As eleições no Brasil acontecerão dentro de poucos dias. A possibilidade de mais uma vez observarmos a ascensão de um candidato cujo discurso assenta em pressupostos autoritários apresenta-se como muito provável.

A questão que muitos de nós colocam é: por que motivo tantas pessoas parecem apreciar um discurso que retrata as mulheres, os indígenas e os negros como inferiores, que sugere a tortura e a guerra civil como formas de controlo e manutenção da ordem, e que apela ao armamento massivo da população brasileira?

É fácil rotular todos os defensores e apoiantes destas medidas de ignorantes, ou incapazes de manterem viva a memória da ditadura, ou de incapacidade para insistirem na democracia. Certamente, entre os apoiantes existirão muitos que se enquadram no que atrás referi, mas será que é somente na responsabilidade individual que deve residir a resposta à questão da ascensão de políticos que promovem um discurso de ódio, nacionalista e autoritário?

Acredito que não. As condições sociais e políticas que observamos no Brasil não são equiparáveis ao contexto português, principalmente no que se refere às desigualdades sociais e à violência, mas é importante que nos mantenhamos alerta, e parece-me que em Portugal os fenómenos norte-americano e brasileiro não passaram despercebidos. Talvez o efeito de contágio não tenha passado sem que venha a deixar marcas.

Que ilações devemos retirar? O que está gradualmente a suceder é, em boa medida, o resultado da incapacidade dos diferentes governos e das instituições democráticas, ao longo de várias décadas, promoverem e potenciarem melhores condições de vida para a maioria da população — e, por consequência, permitirem o agravamento das desigualdades sociais. É visível um certo conformismo das classes políticas que advém de uma garantia que se julga inalterável, de que o poder se manterá ideologicamente no centro e nunca escalará para os extremos políticos. E este conformismo, aliado à convicção de que tudo está controlado e o “povo” silenciado, parece sossegar quem julga manter o poder.

Ao aumento das desigualdades sociais acrescento escândalos de corrupção, lavagem de dinheiro, diplomas académicos fraudulentos, favorecimentos, incumprimento de programas políticos, ausência de políticas de redistribuição, aumento dos impostos sem retorno de serviços públicos de qualidade, desinvestimento e degradação de áreas fundamentais em democracia como a educação, saúde, segurança social e mobilidade, ausência de respostas às solicitações dos cidadãos, entre outras. Além da gravidade que todos certamente atribuímos aos exemplos que refiro, a realidade é que se há algumas décadas estes fenómenos apareciam encobertos e chegavam muito raramente ao conhecimento público, nos últimos anos tudo parece acontecer frequentemente e sem o mínimo de pudor. É demasiado grave para não transformar cada um de nós numa espécie de panela de pressão, é demasiado grave para não criar em cada um de nós um monstro que consome a nossa esperança num país e num mundo melhores, é demasiado grave para que lidemos com as dificuldades das nossas vidas sentindo que estamos em certa medida sozinhos nessa luta. E, quando nos sentimos sozinhos, já não temos nada a perder.

Temos que ter cuidado e manter o discernimento. É absolutamente necessário que todos os governantes acordem e enfrentem a realidade porque as alterações políticas que emergem em força um pouco por toda a Europa e pelo mundo são em grande medida da vossa responsabilidade. Ou achavam que abstenções sistemáticas de 40% em eleições autárquicas e legislativas eram apenas uma benesse para a manutenção do poder?

Para cada um de nós, cidadãos comuns, é fundamental que não baixemos os braços e que não desacreditemos a democracia. Por muito desespero e falta de esperança que nos tenham causado, é importante mantermos presente que mais valem todas as “liberdades” que a democracia nos permite do que todas “as armas” que a ditadura nos aponta.

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