Como Ronaldo entrou no furacão #MeToo
Reaberta investigação a denúncia de violação a Kathryn Mayorga. "Os nossos detectives estão a verificar a informação que foi fornecida pela vítima", diz a polícia de Las Vegas ao PÚBLICO.
Idolatrado por meio mundo, Cristiano Ronaldo está agora no furacão #MeToo. Bem pode o jogador reclamar via Instagram que é só mais uma alegação de alguém que procura ganhar fama à sua custa que isso não eclipsa o risco de poder ter de responder perante a justiça norte-americana quanto à acusação de ter violado Kathryn Mayorga, num quarto de hotel de Las Vegas, em Junho de 2009.
Apesar do que alegou o jogador português ao serviço da Juventus, não são "fake news", ao que garantem os advogados de Kathryn Mayorga que entregaram a queixa na quinta-feira, dia 27, no Tribunal de Clark County, no Nevada. Noutra frente, a polícia de Las Vegas disse esta terça-feira que a investigação foi reaberta e que ainda têm o kit usado para recolher eventuais vestígios de ADN do agressor, bem como a documentação médica que comprova as lacerações nos órgãos sexuais da vítima.
Na altura, Kathryn terá sido persuadida por uma advogada pouco experiente a optar pela mediação extrajudicial que acabou com o pagamento à norte-americana de 375 mil dólares (cerca de 323 mil euros). Em troca, assinou um acordo de confidencialidade que a proibia de nomear o nome do jogador português inclusive durante as sessões de terapia.
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Na acção judicial, a empresa de advogados de Leslie Stovall pede ao tribunal que anule este acordo que foi assinado numa altura em que Kathryn estava fragilizada e receava ser alvo de represálias por parte do jogador. E numa altura em que a aterrorizava-a a ideia de vir a ser humilhada publicamente, que lhe terá então sido veiculada, nomeadamente pela polícia. Aliás, na queixa de 31 páginas alega-se ainda que o jogador contratou uma equipa de “fixers”, especializados em salvaguardar a reputação dos que o contratam, a quem pagou para que garantissem que o caso não viria a público nem seguiria as vias judiciais.
Polícia disposta a arquivar caso?
Esses “fixers”, lê-se na queixa, teriam uma fonte da polícia de Las Vegas que lhes terá garantido que o ocorrido não seria classificado como “crime violento”, antes como assédio, e que a polícia estaria disposta a arquivar o caso se eles chegassem a acordo.
Ao PÚBLICO, o Departamento da Polícia Metropolitana de Las Vegas confirmou apenas que respondeu a uma chamada de agressão sexual a 13 de Junho de 2009. “Na altura em que a queixa foi registada, a vítima não divulgou aos detectives o local do incidente nem uma descrição do suspeito. Foi realizado um exame médico. Em Setembro de 2018, o caso foi reaberto e os nossos detectives estão a verificar a informação que foi fornecida pela vítima. Esta investigação está a decorrer e não serão divulgados mais detalhes neste momento”, adiantou o Gabinete de Informação Pública daquela polícia, numa declaração enviada ao PÚBLICO por email.
Este caso foi noticiado pela primeira vez há um ano e meio, quando a revista alemã Der Spiegel teve acesso a documentos disponibilizados pela plataforma Football Leaks (o equivalente ao WikiLeaks do mundo do futebol). Na altura, a agência que representa Cristiano Ronaldo, a Gestifute, qualificou as alegações como “mera ficção jornalística”. Na sexta-feira, a revista alemã volta a referir-se ao caso, apresentando documentos assinados e a versão que Kathryn lhes deu numa entrevista que deverá motivar, por si só, um outro processo judicial. “A matéria noticiada é manifestamente ilegal e viola os direitos de personalidade do nosso cliente Cristiano Ronaldo de uma forma extremamente grave”, lê-se num comunicado em que Christian Schertz, o advogado alemão do jogador, se diz perante “uma das violações mais graves dos direitos de personalidade dos últimos anos”.
E o que contou, afinal, a Der Spiegel? Que Kathryn, então com 25 anos, conheceu o jogador, que estava então no processo de mudança do Manchester United para o Real Madrid, na noite de 12 de Junho de 2009, no night club de um luxuoso hotel de Las Vegas, cidade onde Ronaldo passava férias com um primo e um cunhado. As imagens captadas nessa noite pelos paparazzi mostram-na a dançar em frente a Cristiano Ronaldo que, numa outra imagem, lhe diz algo ao ouvido, o que bastou para que, daí a algumas horas, a imprensa cor-de-rosa especulasse quem seria a morena ao lado do jogador mundialmente famoso.
Abra-se aqui um parêntesis para lembrar as três razões pelas quais a ex-modelo decidiu falar agora. Primeiro, os novos advogados ter-lhe-ão garantido que o acordo de confidencialidade não é válido. Em segundo, depois do movimento #MeToo, de que o produtor Harvey Weinstein foi o primeiro alvo, ter eclodido, o mundo mudou na forma como encara as vítimas de violência sexual. Em terceiro, esta é uma oportunidade, como sustentou a própria Kathryn à Der Spiegel, para ajudar outras mulheres que possam ter sido igualmente violadas por Ronaldo.
No Twitter, Ronaldo respondeu às acusações: “Aguardarei com tranquilidade o resultado de quaisquer investigações e processos, pois nada me pesa na consciência.” “Nego terminantemente as acusações de que sou alvo. Considero a violação um crime abjecto, contrário a tudo aquilo que sou e em que acredito. Não vou alimentar o espectáculo mediático montado por quem se quer promover à minha custa”, escreveu ainda, numa publicação feita esta quarta-feira.
Festa na penthouse
Longe já dos holofotes, naquela noite, a festa terá continuado na penthouse do jogador, num hotel ao lado. Convidada a mergulhar no jacuzzi, Kathryn terá começado por recusar, alegando que tinha uma sessão fotográfica na manhã seguinte e que não queria arruinar o vestido. Ronaldo ter-lhe-á oferecido uma camisola e uns calções, que aceitou, e terá sido quando estava na casa de banho anexa a um dos quartos a mudar de roupa que o jogador a abordou, semidespido, convidando-a primeiro a beijar-lhe o pénis – o que ela diz ter recusado – e forçando-a depois a ter sexo anal, apesar da ela repetidamente gritar “não” e “pára”. No fim, o jogador ter-lhe-á perguntado, com ar culpado, se a tinha magoado e dito algo sobre ser um tipo 99% bom, com excepção de 1%.
Quando saiu do hotel, Kathryn ter-se-á dirigido a um hospital mas terá tido medo e recuou. Horas depois telefonou para a polícia de Las Vegas e acabou por ser examinada, providenciando as provas forenses que confirmaram as lesões compatíveis com violação e dando início ao processo a que a revista Der Spiegel garante ter tido acesso. Na altura, Kathryn confirma que recusou divulgar o nome do violador. O acordo de mediação com que concordou, a conselho da sua advogada de então, visava “ensinar uma lição” a Ronaldo: “Queria obrigá-lo a ter de lidar com isso, a ter de me encarar.” Além disso, impunha-se que ele pagasse pelos tratamentos a que teve de ser sujeita.
Na preparação para o processo de mediação, vítima e alegado agressor terão tido que responder a vários questionários. A Der Spiegel alude a um, datado de Setembro de 2009, em que o jogador terá reconhecido que Kathryn disse “não” e pára” várias vezes durante o acto sexual, apesar de não ter chegado a gritar ou a pedir ajuda.
No dia da mediação, o advogado português Carlos Osório de Castro que lá estaria em representação de Ronaldo terá enviado vários SMS ao jogador, num dos quais relataria: “O mediador está a dizer que ela desabou em lágrimas e que está abalada porque pensa que não estás minimamente interessado nisto e que estás noutro lado qualquer." Minutos depois, novo SMS de Carlos Osório de Castro com uma quantia: 950 mil dólares. O pedido foi recusado e, 12 horas depois, o acordo terá sido fixado em 375 mil dólares. Seria o que Ronaldo ganhava numa semana no Real Madrid, segundo as contas da Der Spiegel. E o pagamento, segundo a revista alemã, terá sido feito com recurso a uma conta offshore.
Contactado pelo PÚBLICO para comentar a notícia da revista Der Spiegel, o advogado Carlos Osório de Castro clarificou que a “posição de Cristiano Ronaldo sobre este ‘número de circo’ será muito brevemente tornada pública”. Com Alexandre Martins, Cristina Ferreira e Rita Marques Costa