Polícia tolera racismo e denúncias não são investigadas a fundo

Relatório sobre Portugal da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa é apresentado esta terça-feira em Estrasburgo.

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Miguel Manso

Em Portugal, os comentários racistas e homofóbicos são raramente proferidos por políticos e, quando acontecem na sociedade, são condenados publicamente; a violência racista é pouco comum e as autoridades mostram a sua oposição firme a esse fenómeno; o país reforçou a legislação contra os discursos de intolerância e ódio e ratificou em 2017 um protocolo que inclui uma proibição global da discriminação.

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Em Portugal, os comentários racistas e homofóbicos são raramente proferidos por políticos e, quando acontecem na sociedade, são condenados publicamente; a violência racista é pouco comum e as autoridades mostram a sua oposição firme a esse fenómeno; o país reforçou a legislação contra os discursos de intolerância e ódio e ratificou em 2017 um protocolo que inclui uma proibição global da discriminação.

O relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) – um organismo independente de monitorização dos direitos humanos dos 47 países do Conselho da Europa –, que é publicado nesta terça-feira, enuncia vários aspectos positivos, mas rapidamente expõe o que considera serem lacunas na lei e na prática contra a discriminação motivada pelo racismo ou a homofobia. 

A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) não é independente, salienta a ECRI que manifesta igualmente dúvidas quanto à independência de entidades como a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) ou o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), com competências para receber queixas, investigar e propor sanções, mas com dependência directa do Executivo.

Os elementos que constituem este grupo independente, que publicou o último relatório sobre Portugal em Março de 2013, dizem que houve, desde então, muitos progressos nalguns aspectos mas também manifestam preocupação relativamente a outros. Todos os anos, a ECRI publica relatórios sobre uma dezena de países. Neste ano, neste conjunto, está Portugal. 

“São inúmeras as acusações graves de violência racista cometida por agentes da polícia", aponta o relatório. "Contudo, nenhuma autoridade reuniu sistematicamente estas acusações e procedeu a um inquérito eficaz para determinar se são ou não verdadeiras. Isto levou ao medo e falta de confiança na polícia, particularmente entre as pessoas de origem africana."

O documento cita o despacho de acusação contra os agentes da polícia da Esquadra de Alfragide acusados de racismo e tortura, em Julho de 2017, como exemplo de “uma situação grave de racismo institucional numa unidade da polícia que é tolerada pela sua hierarquia”. Por isso, recomenda a criação de um órgão independente para investigar “as alegações de abusos e racismo pela polícia” em Portugal.

A pedido das autoridades portuguesas, um documento intitulado “Ponto de vista do Governo” é acrescentado num apêndice ao relatório. Nele, a PSP e a IGAI refutam a maioria das conclusões que lhe dizem respeito, em particular a acusação de que toleram o racismo. A IGAI, em particular, insurge-se contra a mencionada necessidade de um organismo que investigue alegados casos de racismo e violência da polícia, e apresenta-se como esse "orgão independente".

Afrodescendentes e ciganos

Noutro exemplo de discriminação, o documento de mais de 60 páginas relembra que o abandono escolar das crianças afrodescendentes é três vezes maior e existem cinco vezes menos alunos de origem africana na universidade. O desemprego é elevado entre os adultos afrodescendentes, os programas de realojamento resultaram numa segregação espacial e os que não conseguiram beneficiar deles vivem frequentemente em bairros pobres, acrescenta.

A situação das crianças ciganas é “profundamente preocupante”: 90% delas abandonam a escola cedo, frequentemente entre os 10 e 12 anos de idade. Apenas 52% dos homens e 18% das mulheres de origem cigana trabalham.

O relatório conclui que não foram alcançados alguns dos objectivos mais importantes da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas de 2013. Lembra que 90% das crianças ciganas abandonam a escola antes de concluírem o ensino obrigatório em comparação com 14% da população em geral.

E resume: “Os ciganos continuam a sofrer elevados níveis de desemprego, vivem frequentemente em condições de habitação precárias e são ameaçados de despejos forçados. Os afrodescendentes enfrentam problemas semelhantes.”

A ECRI faz duas recomendações prioritárias, relativas ao fim dos despejos forçados ilegais (em bairros degradados) e à execução de despejos legais e dentro das normas internacionais, bem como ao dever do Estado de garantir que todas as crianças ciganas frequentem o ensino escolar obrigatório.

Contudo, é na investigação a casos de violência policial que encontra mais lacunas, admitindo que, relativamente à independência das entidades que investigam os actos de violência ou discriminação, tem a maior desconfiança.

Falta independência

As críticas mais duras visam, justamente, as polícias e a IGAI, ao ponto de a ECRI recomendar “a criação de um órgão independente que investigue as alegações de abusos e racismo pela polícia”.

“São inúmeras as acusações graves de violência racista cometida por agentes da polícia”, considera a ECRI, que faz especial referência ao caso de 18 agentes da polícia acusados de tortura e outros crimes contra seis vítimas de raça negra, em 2015 na Esquadra da PSP de Alfragide, actualmente em julgamento.

O relatório menciona o despacho de acusação proferido em Julho de 2017 como um sinal de que existe “uma situação grave de racismo institucional numa unidade da polícia, que é tolerada pela sua hierarquia”.

Sanções não dissuasoras

Na análise iniciada em Novembro de 2012 e concluída em Março de 2018, a ECRI considera que a independência dos organismos de promoção da igualdade (como é o caso da CICDR) “é indispensável para assegurar a sua eficácia e impacto, em particular ao tratar da discriminação (estrutural) que emana das autoridades e ao decidir sobre as denúncias, tal como no caso da CICDR”.

E justifica: “Por essa razão, as autoridades deveriam transformar a CICDR numa entidade jurídica distinta, colocada fora do executivo e do poder legislativo, atribuir-lhe um orçamento separado, permitir-lhe decidir independentemente a sua organização interna e a gestão dos seus recursos."

A ECRI recomenda ainda que todos os que exerçam funções de supervisão nessa "entidade jurídica distinta" sejam seleccionados e nomeados "através de procedimentos transparentes, participativos e centrados nas suas competências" e que seja conferido a essa entidade (que seria uma outra CICDR) "o direito de fazer declarações públicas e publicar estudos e relatórios de forma independente.”

De acordo com a ECRI, a falta de independência condiciona as práticas. Em muitos casos, explica, as medidas tomadas para combater o discurso de intolerância e ódio são insuficientes e as sanções aplicadas não são dissuasoras – acontece por exemplo quando grupos da extrema-direita e neonazis propagam o discurso de ódio na Internet e ameaçam os migrantes.

O ACM e a CICDR não publicam estatísticas específicas sobre este fenómeno. As estatísticas recolhidas por organizações da sociedade civil e apresentadas em estudos indicam que o número de casos de discurso de ódio é bem mais elevado do que as divulgadas pela Direcção-Geral da Política de Justiça cujos dados públicos mais recentes são de 2014.

A preocupação estende-se a pessoas sujeitas a actos ou discursos homofóbicos ou transfóbicos. “A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), que tem competência para auxiliar as vítimas de homofobia e transfobia, confirmaram que muitos casos de discurso de ódio não lhes são comunicados”, escreve a ECRI. O ACM admitiu o mesmo, relativamente aos migrantes.

Segundo um estudo internacional, “apenas um quarto das pessoas inquiridas [em Portugal] conhece estas duas instituições; apenas 5% das vítimas ciganas e 9% das vítimas negras contactaram uma autoridade após sofrerem discriminação”.

Regra progressista

No plano das leis, a ECRI acolhe bem a ratificação em 2017 de um protocolo no qual Portugal se compromete a proibir globalmente a discriminação. E saúda algumas das medidas tomadas para tornar isso possível, como a formação de polícias e as iniciativas de sensibilização na escola e na comunidade, e aponta outros progressos, como por exemplo a cooperação entre as polícias, os organismos do Estado e a sociedade civil para impedir que o discurso do ódio ou a discriminação se banalizem.

Porém, lamenta que nenhum artigo do Código Penal criminalize “explicitamente a expressão pública de uma ideologia racista”. Do ponto de visto penal, existem lacunas relativamente àquilo que é a Recomendação de Política Geral feita a todos os Estados e de igual modo, refere.

Por outro lado, considera que a legislação portuguesa deve criminalizar a discriminação racial no exercício de um cargo público ou profissão e que a motivação racista, homofóbica ou transfóbica seja assumida como circunstância agravante em qualquer infracção e não apenas, como já prevê a lei, nos crimes de homicídio e de ofensas corporais. Mas aponta como muito positiva a “regra progressista”, recentemente introduzida, de inversão do ónus da prova: a discriminação é presumida e deixa de ser necessário à pessoa visada provar que ela existiu.