Museu nacionais: pouco, melhor que nada
O tempo agora é o de saber se aquilo que nos é proposto, mesmo que muito limitado, vale ou não a pena.
Por estes dias vai ser ouvido o ministro da Cultura, em sede de comissão parlamentar, sobre projecto de decreto-lei visando conferir maior autonomia de gestão aos museus e monumentos nacionais. Trata-se de promessa constante do programa do Governo, que apenas se estranha ser tão tardiamente cumprida (esperando que o seja...).
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Por estes dias vai ser ouvido o ministro da Cultura, em sede de comissão parlamentar, sobre projecto de decreto-lei visando conferir maior autonomia de gestão aos museus e monumentos nacionais. Trata-se de promessa constante do programa do Governo, que apenas se estranha ser tão tardiamente cumprida (esperando que o seja...).
Deve-se começar por dizer que as alterações no horizonte têm sido genericamente classificadas como muito insuficientes para o que verdadeiramente se pretendia e faz efectivamente falta. Entre outras associações (caso da Associação Portuguesa de Museologia, Apom) e profissionais, a Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional dos Museus (Icom Portugal), em conjunto com a Aliança Regional europeia do mesmo organismo (Icom Europa), tomaram também posição nesse sentido: museus e monumentos nacionais constituem “símbolos” e “instrumentos de soberania” que ultrapassam governos e até regimes políticos. E os museus em particular, pela sua natureza e estrutura organizacional, requerem em absoluto a autonomia que tiveram durante muitas décadas (mais de um século nalguns casos) e que perderam aquando do vendaval de centralismo administrativo iniciado durante os governos de José Sócrates e aprofundado durante os de Passos Coelho. Este princípio tem sido repetidamente afirmado e constitui consenso entre os profissionais de museus e também entre todos os que trabalham e frequentam os museus (ver, por exemplo, “Acerca da autonomia de arquivos e museus”, PÚBLICO, 15/8/2014). Entendamo-nos, pois, para que fique claro: autonomia dos museus significa identidade jurídica própria (incluindo personalidade fiscal), quadro de pessoal autónomo, orçamento privativo... e direcção tecnicamente qualificada e independente.
O actual Governo, através do Ministério da Cultura, mas com impulso evidente ao nível do primeiro-ministro, que assumiu pública e convictamente o compromisso de legislar nesta matéria ainda este ano, não entende ter condições de fazer a maior parte do que fica indicado atrás. Mais do que lamentar, diremos que registamos para o momento de avaliação da legislatura. Tudo tem o seu tempo. Agora, o tempo é outro: é o de saber se aquilo que nos é proposto, mesmo que muito limitado, vale ou não a pena. E no entender das organizações acima citadas vale bem e muito a pena. Pretender o contrário apenas redunda em defender que nada se faça, para que tudo fique na mesma (e, porque não somos assim tão ingénuos, sabemos ser essa a finalidade oculta de alguns dos que se têm posicionado neste debate).
Icom Portugal e Icom Europa emitiram sobre esta matéria um comunicado e um parecer, onde se dá detalhadamente conta tanto das insuficiências como das virtualidades do regime ora proposto (ver em http://icom-portugal.org/). Em poucas palavras, aí se considera que a simples obrigação de delegação de competências, de resto mais extensivas do que jamais houve desde pelo menos há cerca de duas décadas, por imposição de decreto-lei (e não pela decisão arbitrária e casuística de cada nova chefia da tutela); a obrigação, pela mesma via legislativa, do uso solidário na programação e vida corrente da receita própria nos museus, palácios e monumentos que a geram (e não o seu desvio para tapar os buracos da tutela, incluindo os do pagamentos de vencimentos a funcionários e restante pessoal, que se diz situar hoje já acima dos cinco milhões de euros); a capacidade de contratualização de bens e serviços até limites muito significativos (os de director-geral)... só isto já bastaria para saudar a mudança. Acresce a alteração profunda em termos de concursos (com júris realmente independentes), duração de mandatos e envolvimento da comunidade em conselhos gerais. Por último, mas não menos importante, regista-se ter existido aqui (embora muito tardiamente e um tanto “a mata-cavalos”) um processo de diálogo sério e profícuo com os representantes associativos – situação que, por ter sido rara na década anterior, merece nota.
Claro que tudo isto sabe ainda a pouco, sim. Não tanto por razões de mercearia, mas pelas razões conceptuais de fundo já aludidas acima. Tem por isso razão um anterior secretário de Estado da Cultura do Governo de Passos Coelho quando agora o afirma (“O Orçamento do Estado para 2019 e a autonomia dos museus”, PÚBLICO, 8/9/2018). Mas apetece dizer que “bem prega Frei Tomás...”: tivesse ele feito o que agora o Governo se propõe fazer (sendo o quadro legal basicamente o mesmo) e já então o teríamos apoiado. Contém o novo regime proposto inconsistências na relação com a legislação vigente, seja a da administração pública, seja a das Finanças? Não nos parece, mas em todo o caso trata-se de avaliação que compete ao Governo internamente fazer e só esperamos que nesse processo não seja de tal modo trucidada a proposta da Cultura, que a mesma deixe de ser útil e por isso defensável.
Finalmente, existe um “caso” particular: o da pretensa “despromoção” do Museu Nacional de Arte Antiga, fazendo-o simplesmente um par dos restantes museus nacionais (cerca de uma dúzia no total). Trata-se em grande medida de “reprise” em filme já visto durante décadas e com nova eflorescência por estes dias (“A tentação autoritária do poder e a chamada ‘autonomia’ dos museus”, PÚBLICO, 25/9/2018). Não é este o lugar para dizer detalhadamente porque não tem razão, nem historicamente nem no presente, o actual director do MNAA para reclamar o estatuto de “primeiro museu” português e daí retirar singularidades administrativas, como já a não tinha uma sua antecessora (“Museus nacionais e o caso Dalila Rodrigues: os pontos nos is”, PÚBLICO, 27/8/2007). Não tem razão quanto a projecto político museológico nacional (desde finais do século XIX), quanto a posicionamento na sociedade portuguesa, quanto a indicadores de desempenho ou quanto às bem-aventuranças de pregador no deserto, que para si reclama. Não tem em especial razão quanto a pretender continuar a ser, modestamente como gosta de dizer, formal e juridicamente “subdirector-geral” – e não assim graduado apenas para efeitos de vencimento. Não tem finalmente razão na leitura que faz do modelo que ora nos é proposto (pressupondo a seriedade do mesmo, claro): ou será que à partida abdica das verbas que “solidariamente” possa receber das unidades orgânicas que produzem receita e são as verdadeiras “galinhas dos ovos de ouro” do sistema, beneficiando outras profundamente deficitárias, como o MNAA? Tem, todavia, razão em tudo o resto. Tem, por exemplo, razão em que será necessário aos museus disporem de NIF, como antes acontecia. E não descansaremos em reclamá-lo – se possível, juntos.