Leïla Slimani: “Não pode haver moralidade no sexo”
Leïla Slimani é uma das mais recentes estrelas da literatura francesa. Recusou um convite do Presidente Macron para ser Ministra da Cultura, mas aceitou o cargo de embaixadora para a Francofonia. Mulheres, sexo e sociedade são os assuntos dos seus livros.
Estreou-se na literatura com No Jardim do Ogre – agora traduzido – um romance audacioso sobre uma mulher que se entrega para ser devorada pelas suas pulsões obscuras. E logo com o romance seguinte, Canção Doce (Alfaguara, 2017) – um quase thriller psicológico sobre um crime de infanticídio – a escritora franco-marroquina Leïla Slimani (n. 1981) ganhou o prestigiado Prémio Goncourt. Entretanto, o Presidente Macron convidou-a para Ministra da Cultura, mas ela declinou. Mais recentemente publicou em França um livro-choque, Sexe et Mensonges [‘Sexo e Mentiras’], sobre a vida sexual das mulheres marroquinas.
Mulheres, sexo, os abismos inconfessáveis da alma humana, a sociedade moderna e as suas fraquezas e contradições têm sido os assuntos dos livros desta escritora nascida em Marrocos – filha de uma médica e de um banqueiro (que há alguns anos foi implicado num escândalo financeiro, morrendo com um cancro no pulmão antes mesmo de ver os tribunais retirarem todas as queixas contra ele).
Leïla Slimani, casada e mãe de dois filhos, esteve em Portugal para participar na Feira do Livro do Porto a convite da Câmara Municipal da cidade. Em conversa com o PÚBLICO contou como lhe surgiu a ideia de escrever o seu livro mais recente (ainda inédito por cá, Sexe et Mensonges: “Quando foi publicado o meu primeiro romance, No Jardim do Ogre, fui a Marrocos para o promover. No final de uma das apresentações, uma mulher veio ter comigo e, depois de me ter dado a sua opinião sobre o livro, começou a contar-me da sua vida, da sua sexualidade, da maneira como a vivia, da dificuldade que é ser mulher em Marrocos.
De como as leis civis regulam a sexualidade, de como uma mulher não pode ter relações sexuais se não for casada. E eu comecei a pensar que deveria escrever sobre isso, que deveria dar a oportunidade àquelas mulheres de falarem, de contarem as suas histórias. Porque acho que a sexualidade é sempre uma questão política, que não é vista apenas como um assunto pessoal que diz respeito à intimidade. É um problema sociológico e eu quis tentar entendê-lo. Quis saber o que é ter vida sexual sendo uma mulher em Marrocos hoje.”
Para o escrever, Slimani encontrou-se com muitas mulheres de várias classes sociais. Contaram-lhe as suas vidas, e apesar de diferente origem e condição, todas elas apontavam o mesmo denominador comum: “não são donas do seu corpo”, como se toda a gente tivesse algo a dizer sobre a sexualidade delas.
Para a escritora franco-marroquina, é manipulando a moralidade que a sexualidade se torna num assunto político. “É o que fazem todas as religiões, e especialmente com as mulheres, apontando-lhe normas, dizendo que o sexo é algo sujo, que as mulheres que têm sexo sem ser no casamento não são virtuosas. A moralidade é manipulável. Mas não pode haver moralidade no sexo, sendo consentido.”
Sobre o seu último livro refere ainda a diferença entre os países do Magrebe e a Europa no campo da sexualidade no que toca a leis civis: “Pode-se ir para a prisão se se tiver relações sexuais não se sendo casada. Se se for mulher há que escolher entre ser virgem ou ser casada. As mulheres têm que esconder parte da sua vida, elas são obrigadas a mentir. Não há o direito de se ser livre.”
Leïla Slimani acredita que as coisas vão mudar muito na próxima geração, pois muita coisa está a acontecer no campo da educação cívica e por isso os homens começam a perder uma visão retrógrada da ‘virilidade’, que começará a ser difícil ser homem pelos padrões antigos. “Talvez a próxima revolução seja para definir o novo papel dos homens”, diz. “Acho que amanhã a minha filha não vai aceitar o que eu aceitei, e o meu filho não vai fazer o que os homens fizeram comigo.”
No jardim dos desejos
A protagonista do seu primeiro romance, No Jardim do Ogre, é uma mulher burguesa, com uma vida comum, mas que escapa ao modelo que a sociedade espera. Cede às pulsões de desejo físico e vai fazendo dos homens com quem tem sexo ocasional referências na sua vida. Slimani conta como lhe surgiu a ideia para este livro: “Eu queria escrever um romance com uma mulher anti-herói, uma mulher autêntica. Andava a pensar nisso e um dia, estava a amamentar o meu filho e a ver televisão de madrugada, surgiu a notícia sobre Strauss-Kahn. No dia seguinte os jornais escreviam que ele era um dependente do sexo, com uma vida sexual louca. Lembrei-me de uma protagonista com uma aparência absolutamente normal, talvez com algum poder, mas com um interior muito escuro, e que tem uma vida cheia de affairs amorosos para aliviar essa carga de angústia que ela sente ter, e que não sabe de onde lhe vem.”
A voz narrativa nada explica, deixando para o leitor a indagação das possíveis causas para aquele comportamento. Como se a personagem estivesse numa caixa de vidro sem poder ser tocada e o narrador se limitasse a descrever. Mas essa é por vezes uma voz difícil e incómoda, onde ecoa a voz da sociedade que a julga, também sem a entender. Leïla Slimani confessa não ter tido propósito algum quando começou a escrever. “Tinha apenas a ideia de que nós não conhecemos os outros à nossa volta. É estranha a ideia de acharmos que conhecemos os outros. Faz-me sempre lembrar as reportagens televisivas, depois de um crime, em que aparece sempre um vizinho a dizer maravilhas do suposto assassino porque ele até o ajudava a carregar os sacos [risos]. Para o escritor é muito interessante escrever sobre esses muitos eus que vivem na mesma pessoa.”
Notícia corrigida às 8h55 de dia 2 de Outubro: o pai da escritora não se suicidou, morreu com um cancro no pulmão.