Sobre os corpos e a paisagem, o erotismo da vida
Objecto que marcará a obra e o percurso do artista Valter Vinagre, Sob o Signo da Lua é um precioso livro de fotografias que nos reconcilia com a experiência da vida, a celebração da música e do mundo natural. No dia e na noite, sem nos fechar nas suas páginas.
Na noite, um foco de luz ilumina o rosto e os olhos de uma rapariga embalada por algo que não vemos, que não se vê. “Êxtase” podia ser a palavra para descrever a sensação que comunica. Ou, talvez seja mais justo falar de “um retrato do gozo de estar viva”, como outros que se mostram em Sob o Signo da Lua, de Valter Vinagre (Avelãs de Caminho, 1954) editado pela Dafne. Este belíssimo livro não é o primeiro, nem será o último, do artista que tem vindo a fotografar, desde os finais dos anos 80, o interior, o campo, a vida rural deste país, mas, marca, indelevelmente, um percurso e uma obra. Antes de o abrir e folhear, é importante saber de onde veio, como se fez. Retorne-se, portanto, à fotografia. Na contracapa, um texto informa que terá sido realizada num festival de música, em Portugal, mais precisamente no Boom, lugar de celebração do trance, subgénero da electrónica. Sob a capa monocromática e cinza, é esse o lugar visitado em Agosto por milhares de pessoas, que se vai desvelando, página a página, em corpos, rostos, olhares, dias e noites.
Valter Vinagre foi à primeira edição do Boom, em 1997, no Alentejo. Tinha ouvido falar do género goa trance, e decidiu ver o que era, como era, sem levar a máquina fotográfica. “O que me impressionou logo, no início, é que a música era tocada por disc-jockeys e produzida em computadores”, recorda. “O som era realizado de um modo individual, mas continuava a ser dirigido a um colectivo. Era diferente do formato da banda ao vivo. Depois, dei-me conta da maneira como as pessoas se comportavam, notei que havia ali algo difícil de exprimir, uma certa religiosidade”. Nos anos que se seguiram, continuou a acompanhar o Boom, sempre na condição intruso, não como um festivaleiro ou um melómano da música electrónica. Para olhar e ver, como artista.
Fotografar no festival
O ano de 2002 marcou o início do trabalho que coincidiu com estabelecimento do festival, até aos dias de hoje, em Idanha-a-Nova, Castelo Branco. “Foi de facto uma coincidência, pois vivo e trabalho lá. Nesse ano, já tinha formado a ideia de que o festival tinha um tipo de atmosfera, de ambiente, só comparável com a de outro festival, o Avante. Este termina com um momento de mitologia política, o Boom com uma consagração à lua e ao sol. Desta intuição, percebi que chegara o momento de ‘disparar’. Estava decidido em ver como as pessoas se comportavam dentro do festival, como se relacionavam entre si, com o som e a música. O que as levava àquele lugar? O que procuravam durante aqueles dias?”
Guiado por estas interrogações, Valter Vinagre marcaria presença no evento até 2016, ano em que encerrou o trabalho. “Reparei que as personagens estavam a mudar, mas que já não estava a fazer nada de diferente e decidi parar. E quando revi o trabalho, percebi que havia ali duas coisas que me interessavam na produção de um livro ou na montagem de uma exposição. O retrato e a paisagem”. Dividido em três secções (“Hipnos”, deus do sono, “Eros”, deus do amor e “Machia”, que significa combate ou batalha) e com textos da autoria António Guerreiro, colaborador do Ípsilon, e do arquitecto Joaquim Moreno, Sob o Signo da Lua não inclui imagens de intimidade ou das das performances musicais (o festival passou a integrar também espectáculos com bandas musicais): “Nunca me interessou entrar no lado mais privado. A intimidade das pessoas não é um motivo que me interessa. As actuações de facto também não existem. Isso seria fotografar o festival e o que eu fiz fui fotografar no festival. Interessaram-me os lugares e as pessoas”. O artista menciona o livro Cá Na Terra, editado em 1998 pela Assírio & Alvim, com texto da autoria de Manuel Hermínio Monteiro, como exemplo dessa abordagem: embora o assunto sejam manifestações de religiosidade pagã, procurou sempre isolar as imagens, trazê-las do documental para um campo mais indeterminado. “Agrada-me esse limbo, estar nessa fissura entre o que é entendido como arte e o que é entendido como documento”, reflete antes de comentar a capa: “Gosto que não leve directamente às imagens e que estas, isoladas, fora do livro, possam perder a relação com o referente exterior, possam conter apenas uma simbologia”.
Tirar da escuridão
Fiquemo-nos pelo livro, lembrando que até ao final de Outubro algumas das suas imagens fotográficas podem ser vistas no Centro Cultural Raiano, em Idanha-a-Nova. Há uma vitalidade que advém da cor, ora mais intensa, ora mais leve, agressiva e serenada, que contrasta com o preto-e-branco de outros trabalhos: “Sim, concordo. Aqui o uso da cor é muito proeminente, quer nos corpos, quer nas paisagens, o que me permite colocá-los, com outra força, no presente. Posso isolar uma árvore da paisagem, um individuo de um grupo, tirá-lo da escuridão”.
Este é um universo distante daquele que rodeava séries como Posto de Trabalho (realizadas entre 2010 e 2013), Olha (2013), Para (2003) ou até Animais de Estimação (2013). Não se encontram alusões à violência ou à morte em Sob o Signo da Lua que parece surgir como reverso, luminoso, desses trabalhos (com a devida distância proponha-se um parentesco com outra série notável, All Beatuy Must Die, que Patrícia Almeida nos deixou). “É verdade, sim. Contrariamente a esses, é um livro de denúncia, mas um livro evocativo. Evocativo da vida, da busca, da nossa luta constante pelo sentido. Com erotismo, com uma ideia de comunhão com as coisas. Mas não deixo de fora o lado mais sombrio”. Valter Vinagre refere-se a algumas imagens nocturnas, em que a luz do flash mostra objectos ou pessoas sujas pela poeira, aparentemente fragilizadas, sós. “Num festival, como na vida, também há isolamento, depressão, tristeza, solidão”, acrescenta.
Embora vibre, a festa em Sob o Sigo da Lua raramente aparece de um modo explícito, com a alegria e a exuberância que associamos aos festejos Se o lado mais negro e duro de Posto de Trabalho não está aqui, para Valter Vinagre a dimensão mais festiva encontra-se noutros livros: por exemplo em Monte Siano um retrato, com texto da escritora Hélia Correia, de uma festa na Nazaré que acontece todos os anos, a 3 de Fevereiro, antes da chegada do Entrudo; ou Ensaiar sobre o Carnaval, também na Nazaré. “Aí deixei visível esse lado da festa, com todas as cores. Nesses dias, vale tudo, tudo. E no dia a seguir, acabou tudo. Se estas comunidades não fazem a festa, a tensão entre elas aumenta. Mesmo entre os casais”, diz.
Em causa está uma metodologia que o artista preza e faz questão de sublinhar. “Quando não estamos a lidar apenas com a arquitectura e a paisagem, se e quando trabalhamos muito a presença humana, com as pessoas, devemos estar atentos ao porquê das coisas, procurar saber porque acontecem.” Esse foi o modo com que abordou o festival Boom. Com um ponto de vista que sendo artístico, compreende o antropológico ou político. “Houve outro aspecto no festival que me chamou a atenção e sobre o qual fui reflectindo”, comenta. “Nas sociedades desenvolvidas, por exemplo, na Europa, enquanto valorizamos o nosso bem-estar, vamos perdendo, também, uma certa religiosidade. Nesse sentido, algumas destas manifestações podem estar associadas à procura de uma nova espiritualidade que não consigo definir”. A celebração do mundo natural, das alegrias simples da vida, sem hierarquias e convenções sociais podem ter a ver com essa procura? Será apropriado dizer que, no livro, a lua, como o sol, brilha para todos? “Sim, há essa celebração. Que tem coisas muitos positivas, como negativas. Em certos movimentos associados com essas ideias também há reacionarismo, fundamentalismos que podem ser perigosos. Isso, de algum modo, fez com que levasse o trabalho para essa espiritualidade mais difusa, explorando a liberdade no espaço, a relação com natureza. Quis perceber como nos estamos e nos podemos reorganizar face às transformações que o mundo sofre hoje, mas como, também, podemos ser condicionados nessa reorganização”.
Memórias individuais e colectivas
Fora das fronteiras temporais e espaciais do Boom, lá fora o mundo persiste, suspenso. Encontramo-lo na carrinha da caixa aberta que traz pessoas do exterior ou nas centenas de carros imobilizados que, ao fim de alguns dias, desaparecerão da paisagem. “Pertencem aos visitantes”, esclarece Valter Vinagre. “O Boom é uma festa que desorganiza o mundo para que, passados os excessos, tudo pode possa voltar à normalidade”. Em Sob o Signo da Lua, as relações estabelecem-se entre as imagens, dentro do livro: a um retrato individual pode seguir-se o de um grupo num momento de repouso ou na contemplação. Uma paisagem ou estruturas precárias, redes, tendas vazias que remetem formalmente para os “palcos” de Posto de Trabalho. “Sim, há aí uma certa auto-referencialidade. Por vezes, inconscientemente, vamos buscar coisas ao corpo da nossa obra. Sou do campo, sou um produto rural. Repare-se na obra do Alberto Carneiro [São Mamede do Coronado, Santo Tirso, 1937- Porto, 2017 ], nas peças e acções que ele fez com medas de palha de milho. Cresci a fazê-las. Aquela arquitectura chamada de perecível ou de utilização temporária esteve sempre presente na minha fotografia, na própria composição, mesmo quando não é referenciada directamente”. A propósito de referências e influências, é provável que quem folhear o livro se lembre dos mestres flamengos, de alguns pintores impressionistas, de Sandro Botticelli, de imagens que simbolizam a fertilidade. Valter Vinagre anui, enquanto olha a fotografia de um grupo de homens e mulheres que descansam e conversam sobre um fio de água. E acrescenta: “Esta é uma imagem do verão total. Era o que acontecia na minha terra quando ia para o rio. Isto é a minha meninice".
Lugares, mas também retratos. Abundam na secção “Machia”, com e como jogos de luz, a entrar ou a sair da noite, sob o calor do sol ou debaixo da sombra das árvores. O que estavam a fazer aquelas pessoas? “Estavam na luta, na busca do amor, da vida, das coisas boas. Isso, para mim, tem muito a ver com o retrato. Não me considero nem de perto uma retratista. Há uma estética ligada ao retrato que nunca me interessou. Mas quis evocar, com os olhares e com as poses do corpo, sítios, relações. Relações com a música, com aquilo que envolveu as pessoas, ali, naquele lugar. E creio que o consegui, desconstruindo a tensão que se cria entre os olhos do fotógrafo e quem está a ser fotografado”. Como naquela imagem, levemente desfocada de uma mulher que atravessa a chuva com um sorriso. Nela, está não apenas a vida, com toda a sua leve intensidade, o Boom ou a história da fotografia. Está também um reflexo que presentifica uma parte da nossa memória colectiva.