Estes é que são os azuis do Restelo. Os outros são só azuis
Depois da separação da SAD, o Belenenses iniciou com uma vitória por 4-0 a sua campanha nos campeonatos distritais com o objectivo de chegar ao topo do futebol português em cinco ou seis anos.
Os domingos à tarde são a hora sagrada do futebol, consagrada nos tempos em que só se via o futebol nos estádios (ou se ouvia na rádio), tempos em que não havia transmissões televisivas. Alguns dirão que era um futebol mais puro, mais de acordo com o associativismo popular que lhe deu origem, no caso do Clube de Futebol Os Belenenses, um grupo de rapazes num banco de jardim a decidir criar um clube para as pessoas de Belém. Tem-se um pouco essa sensação nas bancadas do Estádio do Restelo no último domingo de Setembro de 2018, em que o Belenenses defrontou o Clube Desportivo Olivais e Moscavide-Parque das Nações para a primeira jornada da Série 2 da I Divisão Distrital da Associação de Futebol de Lisboa, um clube de regresso às origens.
Não é um começar de novo. Foram vários passos atrás dados de uma só vez para ir dando um passo em frente de cada vez. Depois de muitos conflitos com a SAD liderada por Rui Pedro Soares (ver texto nestas páginas), o clube, por iniciativa do seu presidente Patrick Morais de Carvalho e sustentado pelos sócios, decidiu separar-se da sociedade que gere o futebol profissional e tentar a sorte no fundo da cadeia alimentar do futebol português, inscrevendo uma equipa numa divisão em que também está outro histórico (o Clube Desportivo Estrela, que carrega as cores e a história do Estrela da Amadora). O objectivo é chegar ao topo em cinco ou seis anos.
Estão mais de duas mil pessoas na bancada central do Restelo para assistir ao primeiro jogo desta equipa construída em mês e meio — na bancada oposta estão cerca de 20 adeptos do clube visitante. Não há números oficiais, mas é uma bancada bem composta, onde estão a ruidosa claque Fúria Azul, com as suas mensagens de incentivo e os cânticos habituais — há uma novidade, um cântico ao ritmo de “Bella Ciao”, uma canção italiana de resistência antifascista, recuperada para os tempos modernos pela série “A Casa de Papel”. É uma escolha adequada, porque esta também é uma história de resistência e isso é um tema recorrente nas mensagens que a central do Restelo passa para o campo. “Ultras contra o futebol moderno”, é o que diz uma das tarjas exibidas pela claque.
Há fumo azul e há aplausos quando o “onze” do Belenenses entra no relvado do Restelo nesta tarde de sol e calor. Ouve-se o hino oficial do clube, o árbitro dá o apito inicial e todos os olhos seguem a bola, que está quase sempre nos pés dos jogadores vestidos de azul a representar um emblema que foi campeão nacional em 1946. Aos 32’, a primeira grande celebração. Ricardo Viegas, avançado de 26 anos, marca o primeiro golo e, antes do intervalo, faz o 2-0. Viegas é o único desta equipa que foi profissional do Belenenses antes da separação, utilizado em sete jogos em 2011-12, quando a equipa estava na II Divisão.
Com a formação dividida entre Benfica e Belenenses, Viegas ainda viria a marcar mais um golo no jogo, que seria o 4-0, isto já depois de Evandro Barros, um defesa, ter feito o 3-0 num certeiro golpe de cabeça. O resultado final até pareceu pouco para a enorme diferença de andamento entre este Belenenses e o CDOM-Parque das Nações, a equipa secundária do Olivais e Moscavide. Sem favor, podia ter sido o dobro.
Os adeptos ainda estão a adaptar-se a esta nova vida longe da ribalta da I Divisão e muitos, para não dizer quase todos, nem sabem quem são os jogadores. É o caso de Jorge Pinto, um adepto que veste uma camisola com mais de 30 anos. O azul está um pouco desbotado, a cruz vermelha no peito já tem as pontas descoladas e o 2 nas costas já quase não se vê. Jorge Pinto, sócio 1884, explica que é a camisola de jogo de Paulo Monteiro, antigo defesa dos “azuis”, numa final da Taça de Portugal em 1986 (derrota com o Benfica).
É um daqueles adeptos que sabe tudo do clube e segue tudo (e pediu desculpa por estar rouco, mas tinha estado na noite anterior a gritar num jogo de andebol frente ao ABC), mas ainda não sabe quem são os jogadores que tem à frente. Rui Rodrigues, que está ao lado, também ainda não os conhece, mas já tem nomes para eles enquanto não se habitua. “O guarda-redes é o Marco Aurélio, o lateral-direito é o Marcelo”, e assim por diante, diz este antigo guarda-redes de andebol dos “azuis”.
Rui Rodrigues é um dos que se recusa a tratar a equipa da SAD por Belenenses. É “aquela equipa”. “Nós é que somos o Belenenses. Mas há dúvidas?”, lança, referindo-se em termos pouco elogiosos ao líder da SAD. E não vai sequer ver o jogo que o Belenenses SAD iria ter ao princípio da noite, no Jamor, frente ao Sporting de Braga. “Até apostei contra eles”, revela, referindo-se aos “50 ou 60” que apoiam a equipa da SAD em tom pejorativo, “os sadistas”.
Nem todos os adeptos que andavam pelo Restelo pensavam assim. Um que não quis ser identificado, disse que iria ao Jamor ver o “outro” Belenenses, mas que nem ele, nem a família, iriam levar qualquer adereço que os identificasse como adeptos do Belenenses. Também o senhor Firmino, que se fez adepto do Belenenses a ouvir na rádio, em tabernas de pescadores, os relatos da equipa de Matateu e Vicente Lucas. “Para mim é tudo Belenenses, não consigo ser contra”, diz este adepto, dono do Volkswagen Carocha dos antigos decorado com as cores e o símbolo do Belenenses que esteve estacionado na relva do Restelo durante o jogo.
É também esta a visão de António Filipe, deputado do Partido Comunista Português, sócio “de nascença” e até agora, com uns anos de interrupção pelo meio. “Lamento que se tenha chegado a este ponto. Em relação à equipa da SAD só posso ter respeito porque é uma equipa que tem as cores e o nome do Belenenses, diz o deputado. A divisão, refere o deputado, é um sinal do que tem acontecido nos últimos anos no futebol e que do qual o Belenenses não é o único exemplo. “Perdeu-se o nexo com as origens populares dos clubes”, disse. Mas ele, tal como os outros dois mil adeptos, saíram com um sorriso porque algum desse espírito começou a ser resgatado naquela tarde de sol num estádio com vista para o Tejo.