O que 61 mil ruínas dizem sobre a civilização maia?
Equipa internacional de cientistas apresenta na revista Science detalhes sobre as 61 mil antigas estruturas da civilização maia detectadas no Norte da Guatemala através de uma tecnologia a feixes de laser.
E se uma tecnologia a feixes de laser perscrutasse uma floresta inacessível para que pudéssemos saber mais pormenores sobre a civilização maia? É isso que se tem vindo a fazer. Em Fevereiro, uma equipa internacional de cientistas tinha anunciado a identificação de 60 mil estruturas antigas no Norte da Guatemala. Agora, a edição desta sexta-feira da revista Science traz-nos informações mais detalhadas sobre essa análise. Ao todo, foram detectadas 61.480 estruturas (muitas delas só agora descobertas) e, como se estudou uma área com mais de dois mil quilómetros quadrados, isto equivale a 29 estruturas por quilómetro quadrado. Uma análise com este detalhe – e a maior feita na região até ao momento – permite que fiquemos a conhecer melhor a complexidade desta civilização e que reavaliemos certos aspectos.
Entre 1000 a.C. e 1500 d.C., a civilização maia prosperou na península do Iucatão e nas suas proximidades. “Conhecida pela sua sofisticação na escrita, arte, arquitectura, astronomia e na matemática, esta civilização está ainda escondida por uma floresta inacessível e muitas questões estão por desvendar”, lê-se num resumo sobre o trabalho. Para saber o que a floresta esconde, tem-se vindo a utilizar a tecnologia óptica de detecção remota chamada Lidar – abreviatura de Light Detection And Ranging (Detecção de Luz e Variação, em português) –, que usa feixes de laser para mapear a cobertura e a superfície do solo a três dimensões.
Em 2013, os cientistas começaram a falar na possibilidade de utilizar a Lidar na floresta do Norte da Guatemala. Mas foi só em 2016 que – a partir de um avião – se lançaram uma série de feixes de laser para se mapear 2144 quilómetros quadrados em 12 diferentes áreas da Reserva da Biosfera Maia, em Péten, no Norte da Guatemala.
Identificaram-se 61.480 estruturas antigas e “a maioria delas descobertas agora”, indica ao PÚBLICO Thomas Garrison, arqueólogo do Ithaca College (EUA) e um dos autores do estudo. “A grande maioria das estruturas são plataformas de alvenaria em ruína do quotidiano dos maias, que deveriam viver em casas construídas com mastros e palha [sobre essas plataformas].”
Quanto à população, estima-se que haveria uma densidade populacional de cerca de 100 pessoas por quilómetro quadrado entre os anos 650 e 800. “Se extrapolarmos os nossos resultados para as planícies centrais da civilização maia – numa área de 95 mil quilómetros quadrados – haveria provavelmente entre sete e 11 milhões de pessoas no final do período clássico (de 650 a 800)”, refere Thomas Garrison. Estas pessoas estariam distribuídas de forma desigual ao longo das planícies centrais, onde haveria vários graus de urbanização.
Para uma população deste tamanho, deveria haver uma economia agrícola de grande complexidade, refere-se no artigo. Ao todo, 11 dos 12 sítios analisados tinham elementos agrícolas. Portanto, havia uma paisagem fortemente modificada pela agricultura. Também foram identificados 362 quilómetros quadrados de socalcos ou de outro tipo de terrenos, 952 quilómetros quadrados de terras agrícolas e vastas áreas de reservatórios de águas com canais.
Encontraram ainda 106 quilómetros de caminhos nos centros urbanos e entre esses centros e grandes estruturas defensivas feitas de terra. Thomas Garrison conta-nos que num dos sítios – El Zotz – descobriu uma fortaleza no alto de uma colina que teria sido criada para tornar aquele povoado impenetrável e para inspeccionar um corredor de transporte. “No coração de Tikal [outro sítio] encontrámos uma pirâmide. Antes, essa estrutura tinha sido identificada como uma colina.” O arqueólogo alerta ainda que, ao longo dos anos, tem havido pilhagens nesta região.
“Este investimento substancial em infra-estruturas integradoras (dos caminhos) e para conflitos (dos sistemas defensivos) destaca a interconectividade das cidades e as zonas do interior, assim como a escala da guerra na civilização maia”, lê-se num comunicado sobre o trabalho.
Thomas Garrison adianta ainda que este projecto é “inédito” porque foi o maior feito com a tecnologia Lidar na arqueologia mesoamericana até agora. “Esta tecnologia, quando aplicada a uma escala regional, revela padrões na densidade da população, tecnologia agrícola, interconectividade entre cidades e estruturas defensivas a uma escala em que os arqueólogos serão obrigados a reavaliar tudo o que julgavam saber sobre a antiga civilização maia”, considera o cientista, destacando que esta é a primeira grande publicação científica sobre um trabalho deste género.
“Vistos como um todo, socalcos, canais de irrigação, reservatórios, fortificações e caminhos revelam uma quantidade impressionante de modificações feitas pelos maias em toda a paisagem numa escala até agora inimaginável”, diz por sua vez Francisco Estrada-Belli, da Universidade de Tulane (EUA) e um dos autores do artigo, que acrescenta que sem o uso da Lidar este mapeamento tinha levado vários anos.
Desde 2009 que a Lidar tem vindo analisar as planícies da civilização maia e de outros povos. Por exemplo, este ano, foi anunciada a “redescoberta” de uma cidade milenar no México – ou seja, percebeu-se a sua dimensão, pois já tinha sido identificada pelos arqueólogos em 2007. Chama-se Angamuco, foi construída por volta de 900 pelos purépechas, um povo rival dos aztecas, e teria cerca de 40 mil edifícios.
“[A Lidar] tem-nos mostrado o que os arqueólogos já suspeitavam há algum tempo: os maias eram mestres da paisagem. Afinal, construíram um mundo que os permitiu prosperar cerca de dois mil anos”, afirma Thomas Garrison. “Parece que muitas das suas práticas, sobretudo as agrícolas, eram mais sustentáveis no passado do que são hoje.”
“Jardineiros da floresta”
Para Anabel Ford – da Universidade da Califórnia (EUA) e uma das autoras de um comentário sobre este trabalho na Science –, este estudo dá-nos uma “visão muito precisa da topografia e da geografia por baixo da cobertura da floresta.” Há muito tempo que o trabalho desta arqueóloga consiste em mostrar que os maias eram capazes de fazer da floresta um jardim. “Numa sociedade agrária com visão ocidental, pensa-se que os maias devem ter destruído a floresta, enquanto eu vejo que a expandiram e desenvolveram durante cerca de dois milénios.”
Anabel Ford considera que os maias foram “jardineiros das florestas” e que a trabalhavam de forma “exuberante” e “desenvolvida”. Por isso, ainda hoje as plantas das florestas dão frutos ou madeira. “Eles usavam terras cultiváveis, não um subconjunto de terra arável ou lavrada. Cultivavam à mão áreas onde o arado europeu [dos colonizadores] não funcionava”, acrescenta. A arqueóloga espera assim que os resultados da análise com Lidar ajudem a reformular essa visão mais ocidental da forma como os maias tratavam a floresta e da complexidade desta civilização.
“Agora podemos ver as localizações das povoações e identificar os seus padrões para começar a desfazer os mistérios de como os maias viviam no ambiente tropical”, destaca Anabel Ford. Contudo, diz que o anúncio deste tipo de trabalhos deve ser cauteloso e ter em conta outros estudos feitos na região para não “exagerar com as reivindicações de novas descobertas” ou ser sensacionalista quanto à prática da arqueologia.
A propósito deste tipo de situações, aproveita para dizer que concorda – em termos gerais – com uma carta aberta assinada por mais de duas dúzias de arqueólogos e antropólogos que acusavam a National Geographic e a imprensa de abusar de palavras “perdida” e “descoberta” e de ignorar décadas de investigação já realizada quanto a um trabalho feito na designada “Cidade do Jaguar” (Honduras) e em que também se usou a tecnologia Lidar.
Contudo, Anabel Ford diz que ainda se deverá fazer trabalho de campo para que os resultados da Lidar sejam validados e explorados. “Vamos continuar a nossa investigação de todas as novas descobertas feitas com a Lidar através de trabalho de campo”, confirma Thomas Garrison. “Precisaremos de cerca de 100 anos para analisar todos [os dados] e realmente perceber o que estamos a ver”, acrescentou Francisco Estrada-Belli à National Geographic em Fevereiro quando anunciaram a quantidade de estruturas identificadas. Afinal, ainda há muito a saber sobre os maias e a sua floresta.