“Democracia é comida no seu prato, dirá o PT na segunda volta face a Bolsonaro”
A professora universitária do Ceará Monalisa Soares Lopes está convencida que Fernando Haddad (PT) vai conseguir a vitória no Nordeste. Não está convencida da tese do "lulismo em crise".
Monalisa Soares Lopes é professora na Universidade Federal do Ceará, e tem um projecto de investigação sobre a “disputa simbólica na política brasileira após a destituição de Dilma Rousseff em 2016, e a forma como afectam as eleições de 2018. O renascimento do Partido dos Trabalhadores, a queda do Partido da Social Democracia do Brasil (PSDB) e o acordar dos maiores terrores brasileiros na candidatura de Bolsonaro são algumas dessas consequências, explica.
Quem vai ganhar o Nordeste nestas eleições, Fernando Haddad (do PT)?
Sim, considero que Haddad vai ser o candidato vitorioso no Nordeste. Quando houve a decisão do PT de levar a candidatura de Lula até às últimas instâncias, houve muito debate sobre a viabilidade dessa estratégia, e muitos duvidaram da capacidade de transferência de votos de Lula para Haddad. Com Dilma Rousseff, houve tempo para fazer a apresentação, para que o eleitor depositasse nela a confiança que tinha em Lula. Mas a transferência de votos para Haddad partiu de uma lógica diferente. Com Dilma, havia o cenário de Lula estar a deixar a presidência com o maior índice de popularidade, então estava a construir um sucessor. Haddad não é um sucessor, um abençoado por Lula. É alguém que precisa assumir um lugar que seria de Lula. O eleitor vota em Haddad quase como uma insistência, para dizer “nós queremos o Lula”. O PT apostou bem nessa estratégia de que o eleitor ficaria indignado por não ver o seu candidato no boletim, por não poder votar nele. O PT puxou por essa indignação. O voto do eleitor do Nordeste é um voto retrospectivo, de quem reconhece as mudanças feitas pelos governos do PT e o impacto que tiveram na sua vida.
Houve quem pensasse que o PT não ia conseguir recuperar para as presidenciais…
O quadro politico que emergia do impeachment de Dilma Rousseff era extremamente negativo para o PT. Lula, que era a maior referência, tinha a imagem completamente comprometida. A avaliação razoável era ‘pôxa vai demorar para juntar os cacos e reconstruir o PT’. Não admira que André Singer, o maior analista político brasileiro, o que faz a investigação mais referenciada, se tenha visto tentado a apresentar uma tese a que chamou 'lulismo em crise'.
Eu na minha tese tratei a hipótese de que o PT estava num cenário difícil, mas este partido leva muito a política como uma narrativa, como um símbolo, e entendi que se estava a movimentar, com muita clareza, para provar que o que se estava a disputar não ficava encerrado ali. O PT colheu muita da sua energia dessa narrativa do golpe, o que foi muito importante para a sua eficácia. A primeira coisa que Dilma Rousseff disse foi “o golpe não é contra mim, não é contra o PT, é contra o povo, contra as conquistas sociais.” Disseram “estão-nos a atacar porque fomos os vossos representantes históricos neste sistema”. Naquele momento, parecia a retórica habitual, o PT sempre disse que era o representante do povo no sistema. Mas o PT esperava que o Governo que viesse a seguir desse errado, como deu.
Os fiéis do lulismo dizem ‘roubar todos roubam, porque só Lula está na prisão?’ Há uma leitura elitista que diz que esse eleitor vota com a barriga, que é o eleitor da miséria, mas eu considero que este é um dos eleitores mais racionais, pois tem uma finalidade, garantir políticas públicas que o favoreçam. Ninguém diz que a elite vota com a barriga, mas também vota para garantir os seus interesses.
Houve e há uma campanha com forte expressão nos media contra o PT e os governos de esquerda, a pretexto da luta contra a corrupção. Os eleitores do Nordeste são menos permeáveis a esse tipo de noticiário?
O eleitorado do Nordeste, classicamente lulista, tem uma clivagem diferente. Há de facto uma cobertura mediática muito negativa em relação ao PT. Nas entrevistas que Haddad tem dado, é sempre castigado com questões relativas ao PT, com as quais ele não concordou necessariamente, e algumas com as quais até discordou publicamente. Há sempre um reforço de um anti-petismo na cobertura mediática. Isso é um facto.
Mas o apoio ao impeachment de Dilma no Nordeste foi alto, cerca de 70%. Só que havia motivações diferentes.
A classe média era o sector mais susceptível, havia um receio de perda de estatuto. Ainda que ela tivesse de facto sido sabotada no Congresso, como afirmou ao Estadão Tasso Jeisserati, o ex-presidente do PSDB, ela disse uma coisa na campanha, e no Governo deu uma guinada mais austera do que tinha prometido. A combinação da política de austeridade dela com a sabotagem que sofria no Congresso contribuíram para o caos em que se tornou a sua gestão em 2015, e isso levou o eleitorado a ir contra ela, no raciocínio de “como é que ela disse antes que estava tudo bem e agora está esse caos?” Cresceu o desemprego, aumentou a gasolina, aumentou tudo. Com Dilma, as pessoas tiveram cortes nas políticas sociais.
Por outro lado, os media brasileiros foram extenuantes na sua defesa da reforma da previdência. Mas reforma da previdência é uma palavra horrorosa para o povo, porque o povo trabalha a vida inteira e tudo o que quer é aposentar-se. Como vão confiar nos media que dizem “tem que fazer a reforma”. Tem que fazer para quem? Os media rapidamente aderiram a essa política de austeridade. Só que o povo diz: “Como assim, a gente mal conseguiu ter um pouco do Estado e já querem tirar de novo?”. Penso que os media perderam com isso, porque fizeram uma cobertura que não foi só crítica do lulismo e denunciadora da corrupção, mas também defensora de um programa que é rejeitado pelo povo. O povo quer tudo menos austeridade.
Foi um tiro no pé?
É interessante notar que os candidatos que mais cresceram foram os que mais cobertura negativa mediática tiveram [Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, Lula]. Os media podem até querer algo, mas daí a conseguirem...
Como vê uma segunda volta entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad?
Haddad vira quase o candidato da união democrática. Mas para apoiar o Haddad, os outros partidos vão exigir que o candidato do PT faça quase o mea culpa. Isso é esperado. Nas entrevistas é pressionado a fazer isso.
E ele é político para isso?
Eu acho que é o melhor no PT para isso, porque já o fez. Se virmos entrevistas dele dos últimos anos, sempre destoavam desse discurso mais hard. Ele é até acusado de ter dito que ‘golpe é uma palavra muito dura’. Depois teve de recuar. Hoje precisa de se assumir, porque o partido tem a narrativa do golpe. O PSDB também terá de se reconstruir, a entrevista do Tasso Jeisserati admite-o claramente.
Mas em termos de imagem partidária, o PSDB está a ter de se reconstituir. A entrevista do Tasso e as do Fernando Henrique querem sinalizar isso. É quase um sujo falando a um mal lavado, não podem dizer que o PT não fez autocrítica, porque eles também não fizeram.
Os impactos da destituição da Dilma na competitividade dos partidos a nível nacional ainda se fazem sentir. O PSDB perdeu muito, é como se tivesse feito um trabalho e quem colheu os frutos foi Bolsonaro. O processo que era para descredibilizar o PT acabou descredibilizando todo o mundo. Bolsonaro foi impulsionado por esse cenário de arrasar tudo. A confirmar-se uma segunda volta Bolsonaro-Haddad, será interessante o confronto de propostas. O seu proposto ministro das Finanças de Bolsonaro é alguém que quer um imposto de renda de 20%, de tributação única para todo o mundo...
Isso é aquela ideia que Paulo Guedes...
...sim. Olhe a polémica que isso vai causar. O Haddad tem uma proposta que é isentar de imposto de renda quem ganha até cinco salários mínimos. A ideia deles é que nestas camadas de rendimentos, tudo o que não gastam poupam para fazer outras coisas, e isso é a tese central do lulismo, fazer a economia girar, essa é a lógica, pôr o mercado interno a funcionar. Essa foi também uma das grandes críticas dos economistas e de sectores da esquerda ao lulismo, focarem-se só no consumo. Já o outro está a dizer que vai é criar impostos para quem não paga. Imagine a população diante disso.
Prevê um vencedor claro?
Não vai ser uma disputa fácil. Do ponto de vista do discurso eleitoral, o PT tem mais brechas que Bolsonaro. Bolsonaro tem a corrupção, e o anti-petismo é quase pregar para convertidos. O Haddad tem a defesa da democracia, mas é uma coisa muito abstracta - como é que se diz ao povo vamos votar porque a democracia está ameaçada? Mas vendo bem, o que eles vão dizer logo é “democracia é comida no seu prato. Democracia é o filho na universidade.” É isso que eles vão fazer. Voltar para a narrativa lulista, de que existia uma vida das pessoas antes e outra depois de Lula no Governo do Brasil.