Kofi Annan era as Nações Unidas
Agora que desempenho o cargo antes ocupado por Kofi, sou continuamente inspirado pela sua integridade, dinamismo e dedicação.
Fiquei muito emocionado com a notícia da morte do antigo secretário-geral das Nações Unidas Kofi Annan, e desde então tenho refletido sobre o que o tornava tão especial. Na minha opinião, é tão simples quanto isto: Kofi Annan era, ao mesmo tempo, único e um de nós.
Era um líder mundial excepcional e, simultaneamente, alguém com quem praticamente qualquer pessoa no mundo se poderia identificar: os que vivem imersos na pobreza, no conflito e no desespero encontraram nele um aliado; os funcionários mais jovens das Nações Unidas seguiam os seus passos, jovens a quem ele disse, até ao seu último dia: “Lembrem-se sempre que nunca se é demasiado jovem para liderar, nem demasiado velho para aprender.”
São poucos os contemporâneos de Kofi Annan que conseguiam unir as pessoas, pô-las à vontade e que as juntasse para atingir um objetivo comum para a nossa humanidade. A arte da diplomacia consiste em não dizer nada, especialmente quando se está a falar! Kofi Annan podia dizer qualquer coisa, muitas vezes, sem proferir uma palavra. Essa capacidade resultava da dignidade, da convicção moral e da humanidade que lhe eram tão profundas.
Tinha uma voz meiga, com uma entoação que nos fazia sorrir e pensar em música. Contudo, as suas palavras eram duras e sábias e, por vezes, quanto mais grave era a situação, mais grave se tornava a sua voz. Tínhamos que nos aproximar para conseguir ouvir. O mundo inteiro prestava atenção e como recompensa bebíamos da sua sabedoria.
Kofi Annan era corajoso, dizia a verdade aos poderosos, enquanto se submetia a um rigoroso auto-escrutínio e, tal como o seu antecessor no cargo de secretário-geral, Dag Hammarskjold, tinha um conceito quase místico da função das Nações Unidas como força do bem num mundo com muitos males.
Por tudo isto, somou feitos notáveis. Impulsionou novas ideias e iniciativas, como os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio e reformas históricas com o seu relatório Em maior liberdade. Abriu a porta das Nações Unidas, aproximando a organização às pessoas, envolvendo novos parceiros na proteção do meio ambiente, na defesa dos direitos humanos e no combate ao VIH/sida e outras doenças fatais.
Kofi Annan era as Nações Unidas e as Nações Unidas eram Kofi Annan. Era também um amigo. Em muitos sentidos percorremos a vida juntos. Quando o povo de Timor-Leste lutava pela autodeterminação, trabalhámos juntos — ele das Nações Unidas e eu enquanto primeiro-ministro de Portugal — para apoiar a resolução pacífica da difícil situação dos timorenses.
Quando o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados necessitava de uma nova liderança, Kofi honrou-me com a sua confiança ao pedir-me que desempenhasse esse papel e pude sempre contar com o seu inabalável apoio para proteger e ajudar os mais vulneráveis dos vulneráveis.
Agora que desempenho o cargo antes ocupado por Kofi, sou continuamente inspirado pela sua integridade, dinamismo e dedicação.
Para ele a indiferença era o pior veneno do mundo. Uma vez terminado o seu mandato enquanto secretário-geral, nunca deixou de lutar na frente diplomática. Ajudou a acalmar as tensões pós-eleitorais no Quénia, deu o seu melhor para encontrar uma solução política para a brutal guerra na Síria e traçou o caminho para fazer valer os direitos do povo rohingya do Mianmar.
Kofi construiu pontes entre vários mundos, norte e sul, ocidente e oriente. Contudo, foram as suas raízes e identidade africanas que se tornaram as suas referências mais firmes.
O grande Nelson Mandela, chamado por muitos “Madiba”, tinha a sua própria alcunha para Kofi, chamando-lhe “meu líder”. Não era uma piada, Kofi era também o nosso líder. Recordá-lo-ei tal como o vi pela última vez, ainda há pouco tempo, nas Nações Unidas: tranquilo, mas determinado, disposto a rir, mas sempre com a gravidade própria do nosso trabalho.
Kofi Annan já não está entre nós e iremos sentir muitíssimo a sua falta, mas estou convencido de que, se continuarmos a prestar atenção, escutaremos as suas palavras e sábios conselhos. “Continuem, por favor!”, ouço-o dizer. “Sabem o que têm a fazer: cuidem uns dos outros. Cuidem do nosso planeta. Reconheçam a humanidade de todas as pessoas. E apoiem as Nações Unidas — o ponto de encontro onde, juntos, poderemos resolver os problemas e construir um futuro melhor para todos.”
Continuaremos a ouvir esta voz da boa vontade e da razão, a voz da moral e da solidariedade. O mundo necessita ouvi-la mais do que nunca.
Ao enfrentarmos as dificuldades destes tempos complicados e turbulentos, devemos inspirar-nos no legado de Kofi Annan — e guiarmo-nos pelo conhecimento que nos continuará a transmitir, instando-nos a trabalhar pelos objetivos a que dedicou a sua vida e que verdadeiramente movem o nosso mundo. (Discurso feito nas cerimónias fúnebres de Kofi Annan em Acra, no Gana, a 13 de setembro de 2018)
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico