Os atritos de Marcius Galan nos padrões do nosso dia-a-dia
Espelhos, simetrias, diagramas, engrenagens. E aquilo que os destrói. Tudo isto está na primeira individual do brasileiro Marcius Galan em Lisboa.
Quando entramos na galeria a primeira impressão que a exposição nos provoca é a de uma rigorosa simetria. O espaço, uma grande nave encimada por um travejamento de duas águas, tendo ao fundo uma sala mais pequena onde percebemos que há peças de formato menor, parece rigorosamente dividido por meio de um eixo perpendicular à fachada principal. Dum lado e doutro deste eixo, cada peça repete-se simetricamente, como se existisse um espelho a dividir a sala.
Contudo, isto é uma ilusão. Ou, melhor dizendo, a ilusão de uma ilusão (já que a imagem do espelho é, por natureza, virtual). Marcius Galan, que trabalhou aqui com a curadora Inês Grosso, conta-nos que na realidade a simetria é apenas uma ficção, uma abstracção que lida com objectos muito reais. Neste caso, as esculturas possuem um carácter etéreo, quase imaterial. Parecem tender para uma linha, como na obra de Waltercio Caldas, um artista que, com Lygia Pape e Iran do Espírito Santo, este jovem brasileiro nascido em 1972 admira. Contudo, ao contrário do que acontece na obra de Caldas, o grande tema subjacente à obra de Galan não é o desenho, mas sim a relação com a arquitectura.
Na sala principal da galeria, onde o eixo central de que falávamos há pouco está marcado no chão por uma linha quase imperceptível, que divide cromaticamente a área através da aplicação de uma cera mate, o artista dispôs as peças em lugares quase improváveis: há esculturas finas como réguas no chão, outras que, apesar de se assemelharem a fitas se penduram dos travejamentos do tecto, outras ainda que parecem sair da parede para o espaço circundante através de um corte no revestimento; há até peças pintadas no chão. “Este é um lugar onde o desenho (a linha) tem uma importância enorme. Eu tinha vontade de criar um espaço não tanto sobre a ideia de ilusão, mas sobre o modo como nós percebemos a arquitectura. E de facto a presença das diagonais”, diz, apontando para o travejamento aparente do tecto, “provoca uma mudança de ritmo dentro do espaço, uma alteração do posicionamento do corpo dentro do espaço”, afirma o artista, a propósito do que vemos aqui.
Perguntamos-lhe se esse posicionamento vai provocar quase como que uma dança no espectador. “Exactamente. Eu acabo por criar um circuito que o espectador deve percorrer, imagino o tempo que ele vai demorar a percorrer este espaço… ele não tem controlo sobre isso, mas essa relação interessa-me muito.”
Obra, espaço e espectador são as três variáveis que estão sempre em jogo na instalação contemporânea. E, contudo, Galan afasta-se das premissas autoritárias do minimalismo das décadas de 50 e 60, por exemplo, para introduzir um pauzinho na engrenagem irrepreensível dos projectos arquitectónicos de autor. É que nunca esta relação de espelhamento é perfeita: as subtis diferenças de cor no chão introduzem o atrito na projecto arquitectónico da galeria, e mesmo no esquema de montagem das próprias peças que, de tão exacto, parece irreal.
A ideia da exposição, que nas palavras do artista combina pela primeira vez “este tipo de montagem que implica com a cor e com os objectos juntos” surgiu na sequência de uma relação de trabalho de cerca de dez anos com a curadora Inês Grosso. “Eu tinha feito um trabalho chamado Secção Diagonal na Galeria Luísa Strina, de São Paulo, que depois foi comprado pelo Inhotim. Nessa altura, conheci a Inês, que era uma das curadoras do Inhotim, e começámos a fazer outros projectos.” O Centro Inhotim, em Minas Gerais, combina um jardim botânico com um centro de exposições de arte contemporânea sem paralelo no Brasil. Inês Grosso entraria mais tarde na equipa de curadores do MAAT, da Fundação EDP, e é neste contexto que recebe o convite para comissariar uma exposição na galeria Francisco Fino. “Tanto ela como o Francisco, explica Galan, queriam uma exposição que pudesse dialogar com o espaço da galeria, não usando unicamente as paredes como suporte, mas pensando na arquitectura, na própria estrutura espacial do lugar.” O resultado é este Exercício de Divisão que agora aqui vemos.
No dia em que conversámos, Marcius Galan trazia um livro de artista, lançado há alguns anos pela editora Cosac Naify, uma editora brasileira mundialmente conhecida por edições de grande qualidade e rigor gráfico, sobre o seu trabalho. “Publicaram o meu livro e fecharam logo a seguir”, contou-nos, com pena. Folheamos o livro. A certo ponto, uma série de trabalhos sobre papel, semelhantes a vulgares folhas de factura rasuradas, chama-nos a atenção. Marcius Galan explica que se trata de trabalhos que faz por desfastio, quase de forma automática: “Este é um trabalho chamado Abstrações Burocráticas: pego num formulário preenchido e vou tapando com riscas negras tudo o que foi escrito à mão. É como se a abstração viesse da burocracia. Como se o desenho surgisse do preenchimento.”
Há poucas coisas mais rigorosas e codificadas que um impresso burocrático. Mas, de certo modo, quase tudo no dia-a-dia urbano está codificado como um diagrama: “Eu gosto de pensar no movimento que nós fazemos na cidade para nos deslocarmos, ou no movimento que fazemos dentro das nossas próprias casas; eu interrogo-me sempre sobre o desenho que esses movimentos criariam se fossem traduzidos por uma linha. Nós vivemos segundo um diagrama. Tudo o que fazemos fisicamente durante o dia pode traduzir-se por um diagrama. O trabalho dos impressos fiscais é também um diagrama. A própria arquitectura vem do desenho, ela é um desenho que se ergue, um diagrama que se levanta.”
E no entanto, para o artista, a relação com a geometria – com o diagrama, a norma, o padrão – é um absurdo. “Muitas vezes eu fico tentando achar uma brecha num sistema lógico que já é tido como exacto para criar um atrito”, explica, contanto como numa obra que fez há um ano no Museu de Arte de São Paulo colocou um mapa na parede com um ponto desenhado, que é, como se sabe, a convenção global para a indicação do lugar de uma cidade. Depois, por baixo do vão do museu, na rua, criou à escala um enorme círculo de tecido que reproduzia a forma do ponto. “Na realidade, a relação com a geometria é absurda, porque um ponto não tem tamanho, é uma abstracção. Começamos toda a geometria a partir desta abstracção, o ponto, para falar de uma coisa precisa. Uma recta também não existe, nada existe! E no entanto medimos tudo a partir da geometria, medimos todas as relações através da geometria ao passo que ela tem uma base inexistente.”
Na segunda sala da galeria há um conjunto de peças menores independentes da instalação principal. Todas elas desenvolvem o mesmo princípio operativo: a inclusão de um atrito, de um pauzinho numa engrenagem que é, no fundo, a de toda a tradição modernista. “Fora de registo “, por exemplo, é um conjunto de peças onde a sombra (na realidade, um vidro cinza) parece deslocar-se do quadrado da pintura para o seu exterior. “Planta e alçado” consiste em peças desenhadas no chão que parecem levantar-se, como Marcius Galan dizia da arquitectura, através de uma vareta de ferro que se ergue do chão. “Segmentos paralelos” traduzem uma ilusão, a de que se levantou uma tira de reboco da parede para a transformar em escultura. E finalmente, há mais “Exercícios de divisão”: desta vez trata-se de fotografias de objectos anódinos dispostos no chão, que o artista dispôs em simetria tal como sucede na sala principal da galeria. A propósito destas imagens, diz-nos que “é tudo construído. Eu jogava as coisas dum lado e fazia igual do outro. Isto originou-se já depois da exposição estar pensada. Eu queria uma imagem que não tivesse uma relação literal com a exposição. O pauzinho na engrenagem.”