A contra-reforma sanitária, ou o neoliberalismo como patologia
A inversão de rumo nos últimos anos ameaça levar o Brasil de volta à situação de há três décadas atrás.
Um dos líderes históricos da Reforma Sanitária Brasileira e do processo de democratização do Brasil, Sérgio Arouca, pautava o seu pensamento e a sua ação pela ideia da estreita ligação entre a realização do direito à saúde e a luta pela democracia. A Constituição Federal de 1988 determinou que a saúde era um direito de todos e um dever do Estado. Um dos aspetos em jogo hoje, na eleição em curso no Brasil, é a resistência às tentativas de desmantelar os meios para a realização desse direito e desse dever.
A situação da saúde no Brasil foi analisada e discutida no passado mês de julho por mais de 7000 profissionais, investigadores, estudantes e ativistas no domínio da saúde, que participaram no Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), no Rio de Janeiro. A ABRASCO, assim como outras organizações e instituições no campo da saúde, nunca deixou de alertar para as graves consequências de medidas que afetam o financiamento público do sistema de saúde, mas também comprometem os avanços conseguidos nas políticas públicas dirigidas à redução das desigualdades e ao combate à exclusão e à pobreza. Alguns desses avanços conhecem agora, pela primeira vez em 25 anos, uma inversão de tendência, como a interrupção da contínua redução da mortalidade infantil e da mortalidade materna; a redução da cobertura pelos programas de vacinação e os consequentes surtos de doenças declaradas como erradicadas; ou ainda o desinvestimento em unidades de saúde e no recrutamento de profissionais assegurando o acesso a cuidados de saúde. Tudo isto acontece num contexto de cortes em políticas públicas, especialmente naquelas que são dirigidas às populações mais vulneráveis e mais sujeitas a formas diversas de violência, incluindo a violência estrutural associada à desigualdade e à exclusão. A Proposta de Emenda Constitucional 95, também chamada PEC do Teto dos Gastos, aprovada em 2016, ao congelar o investimento público por 20 anos, tornou-se um dos instrumentos centrais de desmantelamento das políticas públicas.
A saúde, a educação e as políticas socias dirigidas aos setores mais vulneráveis da população foram especialmente atingidas, contrastando, por exemplo, com o tratamento conferido aos membros do poder judiciário, contemplados com significativos aumentos das suas remunerações.
Este diagnóstico é corroborado por um artigo publicado no início deste mês, na secção de Correspondência da revista The Lancet, uma das mais importantes e prestigiadas publicações internacionais no domínio da medicina e da saúde pública. Os autores – K. Doniec, R. Dall’Alba e L. King – não hesitam em descrever o curso que estão a seguir as políticas públicas e, em particular, as políticas de saúde adotadas pelo atual governo do Brasil, como uma catástrofe em construção, que mostra de maneira exemplar as consequências das políticas neoliberais, centradas na austeridade, na desregulação e na privatização.
Um outro artigo, publicado no mesmo número da mesma revista, permite dar conta da gravidade da crise aberta na saúde a partir dos resultados de um estudo que mostra de maneira detalhada a evolução da carga global de doença e dos principais indicadores de saúde no Brasil, entre 1990 e 2016, à escala do país e das diferentes regiões e estados, comparando-a com a de outros dez países, do Norte e do Sul. O período coberto pelo estudo coincide com o processo de construção, ampliação e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), universal e gratuito, criado em 1988. A evolução dos principais indicadores utilizados – esperança de vida ao nascimento, esperança de vida com saúde, indicadores de mortalidade geral, entre outros – é notável, ainda que continuem a existir diferenças entre regiões. Entre os períodos a que se referem os artigos, o golpe parlamentar que levou à destituição da Presidente Dilma Rousseff e a profunda crise em que o país foi mergulhado a seguir demonstra como o rápido desmantelamento, sucateamento ou desinvestimento em políticas públicas que ocorre desde 2016 inverteu a evolução ininterrupta, desde o início da década de 1990, para a melhoria dos principais indicadores do estado de saúde da população.
A criação e construção do SUS foi já considerada como a mais ousada proposta existente de cumprimento do direito à saúde para todos num país de dimensão continental, com mais de 200 milhões de habitantes, um dos países mais desiguais do mundo, com formas múltiplas de exclusão e de violência. A inversão de rumo nos últimos anos, que tem procurado reverter esse processo, ameaça levar o Brasil de volta à situação de há três décadas atrás.
O Brasil aparece, assim, como um dos laboratórios do projeto neoliberal na saúde e da contra-reforma sanitária que este promove, assente na austeridade, na privatização e na desregulação, nas Parcerias Público-Privadas ou na generalização dos planos de saúde, substituindo o investimento nos sistemas públicos de saúde e no acesso universal à saúde. Mas as múltiplas formas de resistência, por parte de instituições de saúde, de ensino e de investigação, de profissionais, de cidadãos e cidadãs, de movimentos sociais e comunidades, poderão estar a tornar o país também num imenso e diversificado terreno onde se forjam a resistência e as respostas à neoliberalização da saúde e das políticas públicas. Os avanços desta entre nós vêm lembrar-nos que a luta pelo direito à saúde e pela defesa dos sistemas públicos, como o nosso SNS, uma bandeira de sempre dos saudosos António Arnaut e João Semedo, continua a ser uma importante frente de defesa da democracia e dos direitos de cidadania.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico