Faltam seis meses para o "Brexit". Em que ponto está o divórcio?
Independentemente do sucesso ou fracasso das negociações, o Reino Unido deixará de ser um membro da União Europeia a 29 de Março de 2019.
O assunto não estava na agenda original da cimeira informal de Salzburgo, mas os chefes de Estado e de Governo decidiram incluir na ordem de trabalhos um ponto de situação do processo do “Brexit”, beneficiando do facto de não haver conclusões escritas do encontro.
Em que fase se encontra o processo negocial do “Brexit”?
A seis meses do “Brexit”, as negociações entre o Reino Unido e a UE para fechar os termos do chamado Acordo de Saída entraram na fase crítica.
Em Dezembro de 2017, um compromisso político entre Londres e Bruxelas consagrou como princípios gerais do divórcio a protecção dos direitos dos cidadãos europeus no Reino Unido, o respeito por todos os compromissos financeiros assumidos no âmbito do actual quadro financeiro plurianual, e a salvaguarda da cooperação Norte-sul na Irlanda, com a preservação do Acordo de Sexta-Feira Santa que pôs fim a anos de violência e conflito político na ilha.
Desde então, os lados têm estado a trabalhar para verter esse compromisso num acordo de saída. Estabeleceram que esse acordo terá a forma de um tratado jurídico, e concordaram que depois do “Brexit” haverá um período de transição de 21 meses, até Dezembro de 2020, em que o Reino Unido continuará a integrar o mercado comum e a beneficiar da união aduaneira apesar de já não ser um membro da UE com poder de representação ou decisão junto das instituições comunitárias.
O acordo de saída contém ainda um importante “anexo”, uma declaração política conjunta onde os dois blocos estabelecem o quadro da sua relação futura, isto é, os termos de uma futura parceria económica e política. Em Salzburgo, os líderes vão trocar impressões sobre a natureza deste documento: deverá já estabelecer, até ao último ponto, os termos de um acordo comercial; ou então deve apenas sugerir as bases para a relação futura, deixando espaço para a negociação dos seus aspectos concretos após a data do “Brexit”.
É por causa da fronteira da Irlanda que os dois lados ainda não fecharam o acordo de saída?
Há outras arestas a limar, mas esse é o principal obstáculo. Os dois lados já chegaram a consenso em mais de 80% dos artigos do documento jurídico, mas como tem insistido o negociador da UE, Michel Barnier, “nada está fechado até tudo estar fechado”, o que quer dizer que não há acordo de saída até serem resolvidas as divergências quanto à situação na Irlanda. Londres queria atirar a resolução do problema para a segunda fase das negociações, quando os dois lados assinarem um tratado de livre comércio, mas Bruxelas fez saber que isso seria juridicamente inviável: a relação futura não pode ser definida no âmbito do artigo 50º.
Na ausência de uma solução tecnológica que evite a reposição dos controlos alfandegários na fronteira, Bruxelas incluiu no texto do acordo uma solução de último recurso — um acordo-tampão ou “backstop" — que prevê a manutenção de uma área regulatória comum na Irlanda. Londres não aceita essa provisão: na véspera da cimeira, Theresa May repetiu que essa solução arrastaria a fronteira para o mar da Irlanda, pondo em causa a integridade territorial e constitucional do Reino Unido.
Antes de viajar para Salzburgo, Michel Barnier disse que a UE está disponível para “aprimorar” o texto do acordo e estudar diferentes soluções para a inspecção dos bens que chegam à Irlanda do Norte vindos do Reino Unido. Mas ao mesmo tempo lembrou que os 27 têm um dever de solidariedade com a República da Irlanda, e uma obrigação de proteger o seu mercado comum. Ou seja, sem “backstop” não há acordo de saída.
No que diz respeito à relação futura após o “Brexit”, a negociação está a ser mais fácil ou mais difícil?
Formalmente, a negociação da relação futura só arranca depois da adopção do acordo de saída, isto é, esse processo será conduzido já depois do “Brexit”, durante o período de transição. O que não quer dizer que as equipas de um lado e do outro do canal da Mancha não já estejam envolvidas numa intensa troca de ideias sobre as diferentes “modalidades” possíveis de acordo comercial ou parceria económica: há soluções testadas de acordos da UE com a Noruega, a Suíça ou o Canadá, mas o Reino Unido ambiciona um quadro de cooperação mais estreita e inovadora, nunca antes experimentada. No entanto, a UE avisa que Downing Street tem de se basear no cardápio existente, uma vez que “soluções a la carte”, que colidam com a integridade do mercado único, estão fora de questão
O problema é que, para já, as ideias avançadas por Londres são irreconciliáveis com as linhas vermelhas de Bruxelas. O negociador da UE, Michel Barnier, tem tido o cuidado de apontar vários aspectos positivos ao chamado “plano Chequers”, apresentado por Theresa May em Julho. Mas ao mesmo tempo tem dito que a parceria económica pretendida por Downing Street é impossível de concretizar.
De quem é a culpa pelo impasse? É a política doméstica britânica que está a retirar margem de manobra a May, ou é porque no lado europeu começam a surgir dúvidas e a aparecer divisões?
A primeira-ministra britânica não foi apologista do “Brexit” mas comprometeu-se a obter o melhor acordo possível para a saída do Reino Unido da UE. Sob pressão constante da ala eurocéptica do seu partido, May evitou durante meses esclarecer qual era o caminho que pretendia seguir nas negociações, fazendo crescer o coro de críticas internas e aumentando o isolamento do seu gabinete. Quando finalmente avançou a sua proposta, viu-se ainda mais fragilizada politicamente, com uma sucessão de demissões ministeriais — o homem que escolhera para conduzir o “Brexit, David Davis, e o seu rival pela liderança dos tories, Boris Johnson — a alimentar as críticas à sua autoridade para negociar esses termos com Bruxelas.
Os Estados membros da UE têm mantido uma posição de unidade e sintonia desde que o Governo britânico decidiu accionar o Artigo 50. No lançamento das negociações, os 27 identificaram as suas “linhas vermelhas”, que correspondem basicamente aos princípios fundamentais contidos nos tratados (a indivisibilidade das quatro liberdades de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais no mercado único), e definiram o mandato do negociador Michel Barnier. Não se têm desviado da linha.
É verdade que a perspectiva de um fracasso negociar preocupa os europeus, que estão conscientes do impacto francamente negativo de um “no-deal-Brexit” em muitas economias do continente. Mas os líderes também sabem que uma cedência às pretensões britânicas, e a aceitação de um mercado único a la carte, teria um impacto muito mais devastador para o futuro da União, e estão dispostos a suportar a perturbação económica para assegurar a sobrevivência do projecto europeu.
Qual é o calendário e o que acontece se os prazos não forem cumpridos?
A expectativa de ter as negociações concluídas a tempo de o rascunho definitivo do acordo de saída poder ser aprovado no Conselho Europeu de 18 de Outubro já foi gorada, mas em Bruxelas ainda se acredita que será possível acertar o documento antes do fim do ano. O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, propôs a realização de uma cimeira extraordinária sobre o “Brexit” em Novembro.
Se o processo não estiver fechado nessa altura, as campanhas começarão a soar em Bruxelas: para que o “Brexit” possa acontecer de forma ordeira, mediante os termos estabelecidos no acordo de saída, não basta a aprovação dos líderes da UE, o documento também terá de ser votado pelo plenário do Parlamento Europeu e ratificado pelas assembleias nacionais nos países onde a assinatura de tratados internacionais é competência do órgão legislativo. Em Londres, o acordo também tem de passar pela Câmara dos Comuns.
Teoricamente, este processo politico-administrativo ainda pode ser cumprido a tempo da data do “Brexit”, mesmo que a votação do acordo de saída derrape para o último mês do ano. Depois disso, os prazos já são demasiado apertados — e é por isso que já se ouve falar de um eventual pedido de extensão do prazo do artigo 50.º, que pôs em marcha o processo de divórcio.
Isso quer dizer que a data do “Brexit” ainda pode vir a ser alterada?
Não. A 29 de Março de 2019, por força da lei, o Reino Unido deixará de ser um dos Estados membros da UE, independentemente do resultado da negociação e da assinatura ou não de um acordo de saída. Vários jornais e responsáveis políticos britânicos têm repetido a ideia de que uma extensão do prazo para a aplicação do artigo 50 é possível, mas essa hipótese não parece ser muito viável. A única opção para travar o “Brexit” seria se o Reino Unido decidisse anular o resultado do referendo e manter-se na UE.