Nem contigo nem sem ti
Uma história de amor que atravessa as fronteiras da Guerra Fria, contada com enorme inteligência formal e narrativa.
Foi preciso Pawel Pawlikowski regressar à sua Polónia natal depois de um início de carreira feito em Inglaterra para encontrar o “lugar” que até aí lhe escapara — Ida (2013), espécie de road movie austero e incisivo sobre uma noviça que descobre a verdade sobre o seu passado por entre as feridas por sarar do pós-Segunda Guerra Mundial, tornou-se numa sensação e valeu-lhe o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Guerra Fria, o sucessor que agora chega às nossas salas e saiu de Cannes 2018 com o prémio de realização, é um filme-irmão de Ida — partilha o mesmo preto e branco luminoso, a mesma janela de imagem 1.33:1 que remete para o cinema dos primórdios, e, sobretudo, o mesmo olhar clínico, de panela de pressão, sobre a Polónia do pós-guerra.
A Guerra Fria a que o título se refere, contudo, não é apenas a guerra fria que acontece lá fora entre os aliados dos EUA e da URSS. É também a relação entre a Polónia do compromisso e a Polónia da liberdade, entre o coração e a cabeça, manifestada no romance impossível entre Zula e Wiktor, ele músico e director musical de um grupo folclórico que cedo se exila em Paris, ela cantora e bailarina e uma das integrantes do grupo que decide ficar na Polónia. É também o modo como, ao longo de 15 anos contados em “quadros” separados por cartões negros, cada um correspondendo a um período numa cidade, essa relação se desenvolve na ausência do outro, numa lógica de “não posso viver contigo mas não posso viver sem ti”, amplificada pelas fronteiras físicas e políticas que os afastam.
Zula é uma espécie de jeune femme fatale, cuja entrada no filme sugere desde logo um ambiente de film noir, sobretudo quando compreendemos que Wiktor fica perdido de amores por ela — mas não estamos num filme negro desse género, antes num filme sobre como sobreviver quando à nossa volta tudo parece negro. E se Wiktor se sente aprisionado na sufocante Polónia controlada dos anos 1960, também Zula não se sente à vontade com a liberdade total à beira do Maio de 1968, como se tivesse trocado uma prisão por outra. A felicidade “a quente” é impossível para o casal neste mundo “a frio” — o que aliás fica bem definido no fabuloso, e muito Dreyeriano, plano final — porque o seu amor apenas pode existir “entre” os dois, num limbo neutro. Esse constante “braço de ferro” torna Guerra Fria num filme mais interessante, mais “ágil” do que Ida, mas também lhe tira algum foco, alguma tensão, como se ao “abrir o plano” para alargar o contexto e ao fazer estas viagens de ida e volta entre cidades e relações Pawlikowski dissipasse o lado compacto do filme anterior. O cineasta compensa isso com uma atenção cuidada à construção “musical” da narrativa — que vai da “etnografia primitiva” à sofisticação do jazz e da música pop, como uma aprendizagem do amor que se faz ao mesmo ritmo — e o resultado é um filme de uma enorme inteligência formal e narrativa.