Philip Zimbardo: das forças do mal até às brigadas de heróis
O professor norte-americano de Psicologia ficou célebre por nos mostrar o mal de que somos capazes na experiência da prisão de Stanford, levada a cabo nos anos 70. Agora, com 85 anos, quer incentivar o bem com um programa de formação de brigadas de heróis nas escolas e empresas.
Às vezes, na vida real, as forças do bem ganham a luta. O norte-americano Philip Zimbardo acredita nesta frase que soa a epílogo e, mais do que isso, tenta espalhar a mensagem e viver de acordo com ela. Agora. Nos anos 70, o especialista da Psicologia do Mal levou a cabo uma das mais famosas experiências nesta área, levando um grupo de voluntários para “uma prisão” inventada onde existiam guardas e prisioneiros e se experimentavam os limites do mal. Ali se provou (mais uma vez) que o ser humano pode ser assustadoramente cruel. Mas, hoje, o professor da Universidade de Stanford, com 85 anos, quer “fabricar heróis”.
Philip Zimbardo entrou no pequeno auditório repleto da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica do Porto em passo lento, apoiado numa bengala, de corpo curvado, vestindo uma T-shirt azul com um “Z” no peito a vermelho numa adaptação óbvia da conhecida marca do Super-Homem. A imagem estava longe de encaixar no perfil de herói que existe na cabeça da maioria das pessoas, se é que isso existe. Durante cerca de uma hora, sentado na cadeira do palco, falou sobre a sua “viagem desde a criação do mal até inspirar heróis”. Numa apresentação mediática e cuidadosamente montada, com música, piadas, imagens de choque, vídeos e estatísticas, “vendeu” a sua mensagem. E, aparentemente, a plateia, rendida, comprou-a.
A palestra começa ao som de Santana. Ouve-se a canção Evil ways do princípio ao fim. Philip Zimabardo ri, dança na cadeira, com os braços levantados, e incita o auditório a acompanhá-lo. Haverá mais música no final. Mas o que mais importa é o que é dito entre os dois interlúdios musicais que fazem a banda sonora desta apresentação. “O que faz com que as boas pessoas façam coisas erradas?”, atira Philip Zimbardo, lembrando que nasceu no Sul do Bronx, em Nova Iorque, rodeado de miséria, com montes de terra e lixo como parque infantil. Ali, onde “era fácil corromper uma criança para fazer coisas más por dinheiro”.
Lembra que naquele mesmo sítio e na mesma altura também estava Stanley Milgram, com quem partilhou os bancos de escola. “Ele era o mais inteligente, eu era o mais popular. Ele queria ser mais popular e eu mais inteligente”. Milgram, para quem não sabe, também entrou para a história da Psicologia com uma célebre experiência com choques (a fingir) e resultados assustadores (a sério). Resumindo: Stanley Milgram, um psicólogo da Universidade de Yale, conduziu em 1961 uma experiência sobre a obediência à autoridade. Ele queria saber se uma pessoa era capaz de aplicar uma potente descarga eléctrica num estranho (que estava supostamente numa outra sala). O resultado confirmou um dos lados mais obscuros da natureza humana. Desde o mais pequeno choque de 15 volts até aos fatais 450 volts, uma grande parte das pessoas carregava no botão e electrocutava um estranho. Obedecia à ordem. Sobretudo, quando à sua volta via outras pessoas a fazer o mesmo.
“Duas em cada três pessoas foram até à voltagem máxima, mortal. Nove em cada dez administraram esse choque quando os seus pares também o fizeram e apenas um em cada dez o fez quando se introduziu uma pessoa na experiência que se recusou a fazê-lo”. Se o mal parece ser contagioso, o bem pode ser uma inspiração. Milgram fez várias experiências, testando diferentes cenários. Para Philip Zimbardo, entre outras coisas, os resultados revelam “o modelo que somos”, ou seja, o efeito que a nossa resistência pode ter nos outros. Na experiência de Milgram sobre a obediência à autoridade há um dado que impressiona. “Entre os mil participantes, quantos terão recusado o primeiro botão dos choques, dos 15 volts?”, lançou o professor dirigindo-se à plateia. Após uns segundos de silêncio, a mão desenhou um zero. “Zero. Nenhum. Nem um”.
Philip Zimbardo já o disse mil vezes e repetiu a mesma frase no Porto: “Todo o mal começa com 15 volts”. E o que é o mal? “O exercício de poder para intencionalmente fazer mal a alguém” e que pode assumir várias formas, de magoar a destruir, passando por crimes contra a humanidade, contra indivíduos ou instituições. Para ilustrar o conceito do mal, o professor recorreu à imagem da “maçã podre”. Uma maçã podre tem de vir de um cesto de maçãs más que, por sua vez, é produzido por alguém com poder, seja um poder político, legal ou cultural. Assim, tal como tinha dito já numa TED Talk, se queremos mudar um indivíduo, temos de mudar a situação onde está inserido (o cesto) e, se queremos mudar a situação, temos de saber onde está o poder. Depois Philip Zimbardo deu alguns exemplos do “mal sistemático”. Os incentivos dirigidos aos homens na China para que fumem porque isso dá um imenso lucro aos seus governantes, por exemplo. Ou a pobreza, o genocídio, o tráfico de seres humanos. Há ainda, notou, o mal que podemos fazer quando não fazemos nada. O mal da inacção. Um exemplo? “A indiferença de Donald Trump perante o desastre das alterações climáticas”.
Depois de Milgram e de algum contexto sobre a natureza do mal, Philip Zimbardo recordou a sua famosa e irrepetível experiência. Lembrou que aquela acção com 24 estudantes universitários que foram analisados e submetidos a testes para comprovar que eram pessoas “normais” devia ter durado duas semanas. Mas os participantes, divididos em dois grupos (uns eram guardas e outros prisioneiros), cederam à pressão. Um dos “presos” foi-se abaixo após cerca de 30 horas na cave usada para “prisão de Stanford”. O director da prisão, Philip Zimbardo, deixou a experiência continuar durante seis dias. A interrupção do projecto aconteceu quando uma das suas colegas investigadoras o alertou para os abusos que estavam a ocorrer debaixo dos seus olhos. Os guardas tinham-se tornado violentos e sádicos. Os presos estavam emocionalmente de rastos. O professor de Psicologia estava de tal forma envolvido que não se apercebeu de ter ultrapassado o limite. “Estava imerso no mal”, admite. Interrompeu a experiência um dia depois da conversa com a assistente. E, um ano depois, casou com ela.
Ainda assim, o impacto desta experiência, que obviamente nos dias de hoje seria impossível de fazer por ser eticamente reprovável, foi impressionante. Anos depois, Philip Zimbardo escreveu um livro com o título O Efeito Lúcifer. Nesta obra, falava da experiência e analisava as causas psicológicas que provocam autênticas metamorfoses nas pessoas. Abordava outros casos de “horror”. Os abusos cometidos por soldados norte-americanos na prisão iraquiana de Abu Ghraib foi um dos acontecimentos que estudou de forma profunda. No fundo, mostrava como o lado mais negro das pessoas pode surgir facilmente, desde que estejam reunidas determinadas circunstâncias sociais. Depois do livro, fez-se um filme. Em 2015 foi lançado A Experiência da Prisão de Stanford, com direcção de Kyle Patrick Alvarez, e que contou com a participação do professor de Psicologia como consultor. Na conferência do Porto apresentou um trailer desta longa-metragem com as imagens acompanhadas por uma voz de locução que apresenta a “extraordinária experiência que sacudiu o mundo da psicologia”.
Mas Philip Zimbardo quis deixar claro que a sua carreira não se resume à experiência da “prisão” de Stanford. Estudou a timidez, por exemplo. Aquilo que caracteriza como “uma prisão psicológica auto-infligida” e que lhes coloca restrições na comunicação. Estudou as diferentes perspectivas sobre o tempo que fazem com que algumas pessoas vivam mais no passado, outras no presente e outras no futuro. Escreveu livros sobre esses temas. Sobre as dependências dos homens por videojogos e pornografia online, publicou em 2016 Man, Interrupted. Mas o texto mais recente que terá escrito é sobre a famosa experiência dos anos 70.
O “mal” voltou para o assombrar, desta vez com um pequeno movimento de críticas liderado por alguns conhecidos bloggers que afirmaram ter tido acesso a documentos, vídeos e testemunhos de participantes que levavam a concluir que a experiência de Zimbardo era uma fraude, era mentira e, por isso, Philip Zimbardo era um mentiroso. O professor respondeu: “É tudo mentira. Os documentos e vídeos de que falam sempre estiveram disponíveis, eu dei-os ao mundo, estiveram sempre no arquivo de Stanford. Nunca estiveram escondidos. O testemunho que referem ser de um dos participantes é de um mentiroso que já apresentou várias versões da mesma história. Tenho um texto de 20 páginas publicado no meu site (http://www.prisonexp.org/) onde refuto todas as acusações, uma por uma”, disse ao PÚBLICO, no final da conferência. No fundo, disse, trata-se de uma acção levada a cabo por quatro pessoas, bloggers, que numa semana de Junho decidiram publicar as mesmas coisas sobre o mesmo assunto. “Eles devem estar de alguma forma ligados.”
Não se percebe a razão que levou estes críticos a ressuscitar a experiência dos anos 70 sobre o mal. Mas Philip Zimbardo não se mostra minimamente interessado em perder muito tempo com estas histórias de vilões. Agora, desde há alguns anos, prefere dedicar-se aos heróis. E não são os heróis com superpoderes e capas. São os heróis de todos os dias. Qualquer um de nós. Qualquer um de nós que faça, fale ou resista. Exemplos: Rosa Parks, a afro-americana que a 1 de Dezembro de 1955 se recusou a sentar na parte de trás do autocarro e que, assim, se tornou uma heroína dos direitos civis na América. Irena Sendler, também conhecida como “O Anjo do Gueto de Varsóvia”, que salvou cerca de 2500 crianças (na esmagadora maioria judias) durante a Segunda Guerra Mundial. Wesley Autrey, um homem de 50 anos que arriscou a sua vida quando se atirou para a linha do metro de Nova Iorque deixando as duas filhas na plataforma, para salvar uma pessoa que tinha caído nos carris. Philip Zimbardo acrescenta mais um exemplo de um herói e, curiosamente, é mais uma mulher: a psicóloga Christina Maslach, a sua mulher. Que o salvou.
Philip Zimbardo anda à procura de saber o que faz com que algumas pessoas resistam, sejam heróis. O que as distingue das outras. E, mais do que isso, anda a ensinar crianças a ser heróis. O projecto chama-se Heroic Imagination Project (HIP) e está espalhado por todo o mundo. No auditório, no Porto, o professor tinha as duas primeiras filas ocupadas com aprendizes, alunos do 10.º ano da Escola Secundária de Alberto Sampaio (em Braga) que participaram este ano no projecto-piloto do HIP em Portugal. Muitos quiseram tirar uma fotografia com ele. Alguns quiseram mesmo dizer-lhe que Philip Zimbardo é o seu herói.
E será que ele se sente um herói? “Não é que eu faça alguma coisa. Talvez sejam as minhas ideias. Sou um herói intelectual. Tenho boas ideias que inspiram as pessoas. Muitas destas pessoas estudaram coisas sobre mim no liceu, na universidade e conhecem-me por causa dos meus livros. Tenho a sorte de estar vivo aos 85 anos e, por isso, tenho uma longa história”, disse ao PÚBLICO no final da conferência. E aos 85 anos ainda anda pelo mundo fora, 22 nações desde a Austrália aos EUA, passando por Itália e Portugal, a dar formação sobre como melhorar este planeta, dizendo em todo o lado que qualquer um de nós pode ser um herói. Dirige, assume, “uma pequena fábrica de heróis”, o HIP que quer formar brigadas de heróis nas escolas e empresas. Espera conseguir convencer, devagar e de forma sólida, que vale a pena ensinar a todas as crianças a “lição do herói”. Ensiná-los a resistir, a levantar-se, a ajudar o próximo, a falar e a agir contra a injustiça. Se isso não é um herói de todos os dias deve, pelo menos, valer alguma coisa, não?
É cedo para dizer se, na história que um dia será contada sobre Philip Zimbardo, o projecto dos heróis se vai sobrepor à experiência da prisão de Stanford que é um marco na Psicologia. Irrepetível. Mas, e se hoje dessem ao professor carta-branca para fazer uma outra experiência, qualquer uma, sem condições? O que faria? Depois de um minuto de silêncio, Philip Zimbardo encontra a resposta: “Pegar em pessoas que fizeram coisas mesmo muito más e tentar convertê-las. Reabilitação psicológica. Fazer com que alguém que tenha feito coisas más passe a actos heróicos. Isso seria um desafio. Não apenas um indivíduo, mas um grupo de pessoas”. Às vezes, na vida real, as forças do bem ganham a luta.