“Foi muito fixe, Lisboa!”, gritou Bono no final do concerto dos U2. E não é que foi mesmo?

Um jogo cénico invulgar e impactante, em favor de um espectáculo emotivo e politizado. Foi assim o soberbo concerto dos U2 em Lisboa no domingo. Esta segunda-feira há mais.

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Houve as canções novas dos últimos álbuns e alguns velhos temas com novas roupagens. Houve um espectáculo cénico sem igual. E houve uma viagem autobiográfica pelo percurso do próprio grupo que acaba por tocar a história da Europa. O acreditar inocente em causas. O confronto com cinismos, divisionismos, fascismos, os males do mundo. E a procura da sabedoria com a recuperação da inocência no limiar da experiência, fórmula que dá nome a esta digressão dos U2 com duas escalas em Lisboa.

“Foi muito fixe, Lisboa! Divertimo-nos imenso”, disse Bono no final, em português. Foi soberbo, terão sentido as 20 mil pessoas que encheram o Altice Arena, na noite de domingo, no primeiro de dois concertos dos U2 em Lisboa. E no entanto não foi um concerto fácil, daqueles que estão ganhos à partida. Os U2 podiam fazer um espectáculo à Rolling Stones, limitar-se a cantar os êxitos, e ninguém se chatearia muito. Podiam ser como Bruce Springsteen, ter apenas o coração do lado certo, sem se porem muito em causa. Ou podiam ser como os Coldplay, bons rapazes que se limitam a tocar sem grandes causas sociopolíticas que os atormentem. Mas não.

O que é tocante nos U2 é essa forma que têm de olhar para si próprios, e ao mundo que os rodeia, interrogando-se e querendo participar numa dinâmica de mudança. No processo existem contradições? Certamente. Mas não as escondem, assumem-nas, seduzindo uns nesse processo, e enfadando tantos outros, como aqueles que acham que um grupo rock tem é de se preocupar em fazer música, como se alguma vez a música tivesse sido apenas música, ou os que exigem que uma banda exponha complexidade na forma como se posiciona, como se não soubéssemos que, no panteão da comunicação de massas onde os U2 estão inseridos, por vezes o traço grosso é o preço a pagar.

E nem é esse o caso desta Experience + Innocence Tour. É verdade: os U2 fizeram-na da boa outra vez. A começar pelo jogo cénico e pela funcionalidade dos diferentes palcos, com recurso às mais recentes tecnologias, para estarmos todos mais próximos, como em família. É um espectáculo de multidões que consegue ser desafiante e intimista. Na era da informação desmesurada, das fotos e dos vídeos constantes, os U2 ainda conseguem surpreender. Ver no YouTube o cenário criado para a nova digressão até pode dar uma ideia do que se vai experimentar, mas acreditem no chavão: tem mesmo de se estar lá para o sentir e perceber.

É fora de série o cenário criado para esta digressão, com dois palcos, um rectangular mais clássico, e outro circular no meio da arena, existindo uma passadeira gigante a uni-los, onde os músicos deambulam constantemente, e sobre a qual está disposto um incrível ecrã gigante. Dito assim pode parecer que se vai assistir a um espectáculo hollywoodesco. Nada disso. É um dispositivo que serve diferentes ritmos, temperaturas e momentos do espectáculo. Os instantes mais fantasiosos e conceptuais ocorrem na passadeira, os mais introspectivos ou vibrantes no meio do público, no palco circular, e os mais convencionais, quase sempre despidos de qualquer aparato cénico, no palco rectangular.

No início do concerto vemos imagens de cidades europeias arrasadas pela guerra, entre 1926 e 1946, e excertos de O Grande Ditador, de Charles Chaplin, numa espécie de preâmbulo que nos prepara para as duas primeiras canções – The blackout e Lights of home –, ambas do último álbum, Songs of Experience, com o grupo disposto na passadeira, mostrando todas as potencialidades do dispositivo e do ecrã panorâmico. Segue-se, uma “canção nova”, dirá ironicamente Bono, quando atacam I will follow, do álbum Boy, de 1980, com a energia de sempre: no palco rectangular, os U2 voltam a ser apenas o grupo rock de quatro rapazes imberbes que se conheceram em Dublin.

“Obrigado pela vossa paciência”, dirá às tantas Bono, numa referência ao facto de o grupo já não actuar em Portugal há oito anos. Menciona-o durante uma primeira metade marcada por algumas canções intemporais, como Beautiful day, com toda a gente a cantar em uníssono, e pelas alusões biográficas à infância e à juventude de Bono e do grupo, que remetem para essa idade da inocência. É o que acontece em The ocean e Íris (nome da mãe do cantor, falecida em 1974), com Bono a aludir “a um rapaz à procura da sua mãe”. Ou em Cedarwood road, com o cantor a referir o facto de aí ter crescido entre “amigos e inimigos” (nas imagens viram-se alguns desses amigos, como Guggi Rowen e Gavin Friday dos Virgin Prunes), numa interpretação emocionada, acabando por dizer: “Ainda estou aí, nessa mesma rua.”

Em Sunday bloody Sunday, os quatro músicos dispõem-se na passadeira, com o baterista Larry Mullen Jr. a empunhar apenas um tambor, numa versão desnudada da canção, com as cores da Irlanda a dominarem o cenário, para de seguida serem replicadas explosões de carros-bomba de milícias paramilitares do Ulster e entrarmos numa magnífica versão de Until the end of the world. Aí os músicos dispõem-se distantes uns dos outros, algo só possível pela utilização eficaz da tecnologia.

E é aí que se dá a transição para a segunda metade do concerto, com o ecrã, sempre com legendas em português, a mostrar os quatro U2 em versão super-heróis de banda desenhada: o grupo não parece disposto a prescindir da auto-ironia, discorrendo sobre o sucesso e o que ser uma estrela pode fazer à cabeça de um jovem. “À minha cabeça, mais exactamente”, dirá Bono. “Apresenta-te como uma mentira em que queres acreditar. Coisas sem nexo, tais como seres mais interessante do que um cidadão comum.”

E os U2 entram então com toda a veemência numa sequência triunfal – sucedem-se Elevation, Vertigo, Even Better than the real thing e Acrobat – dispostos no palco circular no meio da arena, com toda a gente em delírio. É o momento em que Bono recupera o velho personagem MacPhisto, da digressão Zoo TV, do começo dos anos 90, e não é por acaso. Quer-nos dizer que nunca devemos dar nada por garantido. Se os nacionalismos e os fascismos regressam à Europa, se a desunião grassa na União, porque é que MacPhisto, o maquiavélico, a representação do mal, não pode voltar?

“A Europa deve continuar a manter-se unida, tolerante e acolhedora. Qualquer outra coisa será sempre um risco enorme”, afiançará, porque MacPhisto, ou o fascismo, funcionam segundo os mesmos moldes: “É quando acreditam que eu não existo que acabo por aparecer." É este o bloco mais politizado do concerto.

Foto
Paulo Pimenta

Em Summer of love, Bono começa por dar uma imagem paradísica, evocando um Verão em que os quatro U2 e as suas famílias passaram férias no Mediterrâneo, até que somos submersos por imagens de refugiados nessa mesma zona do globo. E depois sucedem-se imagens de manifestações fascistas e antifascistas, irrompendo Pride (In the name of love), num dos momentos mais efusivos, uma espécie de hino pelo amor e pela paz, contra o ódio e o conflito.

Mas não há apenas mensagens humanistas abstractas. Raramente se viu os U2 serem tão directos. Get out of your own way é dedicado à União Europeia, com as bandeiras comunitárias desfraldadas no ecrã, e com menções a Lisboa, Ronaldo, Eusébio e António Guterres, forma de Bono comunicar que o futuro só poderá ser uma mais aprofundada ligação entre europeus. A desunião, como se viu no início do espectáculo, com as imagens de guerra do passado, conduz sempre ao conflito.

Até ao final ainda se ouviram sucessos como New year’s day, tocado como se pudesse dar o mote para o renascer da esperança, ou City of blinding lights, com imagens gráficas de Lisboa, bem como o momento anti-pobreza e anti-sexista de Women of the world take over, com agradecimento a Ana Moura por ter integrado o coro da campanha Poverty is Sexist.

No encore, as gargantas entoaram a balada One, seguida de imagens de amor entre pessoas de todos os sexos, numa boa interpretação de Love is bigger than anything in it’s way, evidenciando que, mesmo sendo inegável que o último álbum não é muito inspirado, as canções em palco acabam por comportar-se à altura das restantes.

E para o final ficou 13 (There is a light), com Bono a descer até ao público e os U2 a regressarem aos 13 anos, não por nostalgia, mas porque depois de um longo percurso perceberam que, no topo da experiência, não recear a inocência é sinal de sabedoria. Foram estes U2 que Lisboa viu. Tecnológicos e impactantes. E generosos, humanos, europeus, como nós.

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