Miquelina ajudou a nascer meia cidade
Durante os mais de 40 anos em que foi enfermeira-parteira-puericultora, Miquelina Peixoto perdeu a conta a quanto bebés ajudou a vir ao mundo, com a ajuda de muito café e “pastilhas” para dores. Agora, aos 86 anos, a cidade quer homenageá-la.
Tem protesto na voz, certeza e assertividade, ainda que, às tantas, confesse que se emociona “com qualquer coisa”. Miquelina Peixoto tem a pele clara, um sorriso acolhedor, os cabelos brancos por baixo da tinta: “Eu pinto-os.” Não gosta de andar nas bocas do povo e “gosta pouco” de snobismo. Isso é ponto assente logo para início de conversa.
Há quem diga que é a decana das enfermeiras obstetras de Famalicão, embora ela própria não arrisque a dizer que o é. Perdeu a conta a quantas crianças trouxe ao mundo. Mas praticamente todos os dias, se estiver à porta de casa onde vive há mais de 50 anos, alguém lhe há-de levantar a mão. Ela diz que devolve o cumprimento “por educação”, ainda que não faça ideia de quem seja. Afinal, ela ajudou a nascer meia cidade.
“Dona Miquelina”, assim lhe chamam, tem 85 anos, está muito perto dos 86. É a terceira filha de cinco irmãos. A mais velha tem 92. A mãe era doméstica, o pai era comerciante e vendia lançadeiras que se metiam nos teares das fábricas têxteis do Vale do Ave. Nasceu em São Simão de Novais, uma antiga freguesia do concelho de Vila Nova de Famalicão. Passou por colégios de freiras em Santo Tirso e no Porto. E já nessa altura queria ser enfermeira. “Eu gostava muito de enfermagem, sempre gostei. Nesse ano, disseram que bastava a frequência do quinto ano para ingressar na enfermagem”, recorda.
Nos inícios da década de 1950, acabou por ir parar junto das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, ordem religiosa que tinha aberto poucos anos antes a Casa de Saúde da Boavista, no Porto, uma das primeiras unidades de saúde privadas do Norte. Durante os primeiros anos, a instituição formou apenas irmãs, mas acabou por abrir as portas a jovens que dali saíam habilitadas para a profissão.
Fez o curso de Enfermagem e tirou a especialidade de “enfermeira-parteira-puericultora” na Maternidade Júlio Dinis, que havia começado a funcionar em 1939, por iniciativa do médico e professor universitário Alfredo de Magalhães, então director da Faculdade de Medicina do Porto, e a quem se deve também o lançamento do primeiro curso especializado em enfermagem obstétrica no Norte do país.
O pai tinha-lhe morrido. “Fiquei muito em baixo e foi aí que disse: ‘Vou já para a maternidade.’” Por lá estudou, estagiou e fez o primeiro parto. “Quando me lembro do primeiro bebé que nasceu… O doutor Ribeiro era assim: ‘D. Miquelina, tenha calma.’ Eu era muito nervosa. Quando agarrei a cabecinha do rapaz...”, recorda, como se o estivesse ainda a amparar.
A verdade é que não havia grande tempo para pensar quando se tem um bebé nas mãos e uma mãe para tratar, mas o certo é que o parto correu bem. Dali saiu especialista para voltar à terra e trabalhar no posto médico da antiga Caixa de Previdência Social de Ronfe, em Guimarães. Ainda nem tinha passado um mês quando entrou ao serviço numa unidade assistencial idêntica, agora em Famalicão. Foi ali que trabalhou grande parte da vida, conheceu dezenas de médicos. “Passei muitas”, suspira. Foi ali que fez grande parte dos amigos, também entre os utentes das então casas do Povo de Ruivães e Requião, onde, sem receber nada, aconselhava e vigiava grávidas e recém-nascidos, dava injecções, media tensões, vacinava.
À boleia dos carros de praça
Não pode dizer quantos milhares de bebés lhe passaram pelas mãos. Uns partos mais difíceis do que outros, uns que exigiam “umas manobrinhas” para ali e para acolá. Às vezes nasciam os bebés em morte aparente. “Eu cheguei a ter medo que algum me morresse nos braços.” Mas isso nunca aconteceu.
Nos primeiros tempos de trabalho, ia a casa das mães ajudá-las a ter as crianças. Os maridos assustados batiam-lhe à porta, de dia e de noite. Mesmo depois do trabalho, não se negava a ir ajudar a trazer uma criança ao mundo, ou, noutros casos, ir simplesmente acalmar mães de primeira viagem e dizer-lhes que ainda não era a altura. “Às vezes aquilo era em fila. Eu chegava e perguntava: ‘Quem foi o primeiro?’” Às vezes ia ao café e lá iam os pais desesperados à sua procura. “Ó D. Miquelina, venha ver se é para ter o bebé.” Protestava: “Ó senhor, deixai-me em paz.” Mas lá arrancava, com a mala dos instrumentos debaixo do braço.
Miquelina casou-se devia ter uns 20 anos com Carlos Peixoto, o bancário que foi o amor dela durante toda a vida. Tiveram um filho, Paulo, que é hoje a sua grande companhia. E por aí ficaram. “Eu também não tinha muito tempo”, justifica-se.
O cansaço ia-se acumulando. Sempre para trás e para a frente, sempre “com aqueles sapatos fechados de enfermeira”. “É por isso que sou um bocadinho nervosa. Eu ia para um parto e tomava café, vinha do parto e tomava café. Era café e comprimidos para as dores. Um atrás do outro.”
Nem tempo havia para aquecer a cadeira, como lhe diziam lá no centro. “Eu entrava à hora. Fizesse partos de noite, às oito horas estava no serviço. Eu tinha entrada, mas não tinha saída. Trabalhei como uma burra, sem ter férias nem nada.”
O marido nunca quis que tirasse a carta de condução. Ia num “carro de praça” de Famalicão para onde quer que fosse. Os taxistas lá se habituaram às correrias de Miquelina. Quando o “Paulinho” era pequeno, ia com ela para os partos e os motoristas até já faziam “uma caminha” para o menino ir confortável.
Nos mais de 40 anos dedicados à obstetrícia acompanhou a evolução da medicina. A sociedade mudou, a relação com o corpo também. Caíram preconceitos, desfizeram-se mitos. Chegou a liberdade. No início dos anos 70 começou a fazer os registos dos partos, onde guarda os nomes de quem ajudou a nascer, ainda que a lista esteja longe de estar completa.
O marido morreu-lhe há dez anos. Desde então diz que se foi muito abaixo. E nunca mais foi a um médico. Passa os dias por casa. Cada vez gosta menos de ir à rua. E quando sai tem de parar quase de metro em metro para cumprimentar, porque, já se sabe, ajudou a nascer meia cidade. Agora, para celebrar os 86 anos que cumpre no dia 28 de Setembro, haverá uma missa e um jantar e terá uma oliveira plantada em sua honra no Parque de Sinçães, um dos espaços verdes da cidade. Miquelina diz que não gosta nada destas coisas, que tem medo de se emocionar. “Ninguém sonha a vida que eu tive”, diz abanando e baixando a cabeça. Quando a levanta, esboça um sorriso envergonhado: “Mas ao mesmo tempo tenho saudades. São todos meus filhos por aqui fora.”