Cinco décadas de agitação musical no Porto e histórias do baú

Na exposição Musonautas, Visões & Avarias, procura-se mapear a criação musical da cidade entre 1960 e 2010, através de vários documentos, objectos e acervos pessoais de artistas. De José Mário Branco a Mind Da Gap, da imprensa do pré-25 de Abril a luvas de boxe dos anos 90.

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Nos anos 90 aparece Manel Cruz, que com os Ornatos Violeta introduziu uma nova forma de cantar em português paulo pimenta

Em 1963, no Porto, já havia invasões de palco em festivais de música. O grande culpado era Armindo Rock, um miúdo com menos de 20 anos que se autoproclamava o “rei do rock and roll e do twist português”. Segundo a imprensa da época, Armindo “espalhava o delírio” e “electrizava os ânimos” da juventude — coisa muito pouco aconselhável em tempos de ditadura fascista, o que levou a polícia a intervir num dos seus concertos e a suspender os festivais de “rock e twist” no Porto, bem como as actuações de Armindo, que mais tarde decidiu adoptar um novo look de menino bem comportado e virar-se para as canções românticas.

Este é um dos vários episódios tirados do baú na exposição Musonautas, Visões & Avarias 1960-2010 — 5 Décadas de Inquietação Musical no Porto, inaugurada na semana passada na Galeria Municipal do Porto, onde fica até 18 de Novembro, acompanhada por um programa paralelo de concertos, filmes e conversas. A criação e as movimentações musicais no Porto ao longo das referidas décadas são mapeadas cronologicamente através de fotografias, cartazes, discos, memorabilia variada e documentos escritos, visuais e sonoros referentes a artistas de diferentes estéticas e expressões.

No meio de dezenas e dezenas de objectos (talvez demasiados para a dimensão do espaço em questão; por vezes fica confuso e é difícil dirigir o olhar), de um lado vemos as luvas de boxe usadas por Ana Deus no videoclipe de O Mundo A Meus Pés (1993), da banda Três Tristes Tigres; do outro, o cartão de José Mário Branco quando foi preso pela polícia política PIDE, ou as letras da versão inicial da sua FMI (1979), canção-portento de contestação política e de lúcida agonia, eterna e inigualável na história da música portuguesa.

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As luvas de boxe usadas por Ana Deus no videoclipe de O Mundo A Meus Pés (1993), da banda Três Tristes Tigres paulo pimenta

“Esta exposição é sobre a inquietação e as vanguardas musicais do Porto, que começaram a surgir nos anos 60”, introduz Paulo Vinhas, programador e editor de música, fundador do projecto Matéria Prima, a quem a direcção artística da Galeria Municipal, encabeçada por Guilherme Blanc (adjunto de Rui Moreira para a Cultura), dirigiu o convite para fazer a curadoria de Musonautas, Visões & Avarias. Para Paulo Vinhas e a sua equipa curatorial, composta por Hugo Oliveira, Manuel João Neto, Pedro Junqueira Maia, Pedro Tenreiro e Suzana Ralha, a definição de “inquietação” é a de “alguém que conseguiu não replicar linguagens, mas sim criar novos modelos de criação.”

O “eixo principal” da exposição são os criadores, assinala Paulo Vinhas. E é por isso que alguns deles têm direito a espaços próprios, as chamadas “ilhas”, ganhando protagonismo no corredor central da galeria. Nesta selecção constam os compositores de música erudita e contemporânea Filipe Pires, Álvaro Salazar e Cândido Lima — deste último podemos ver, por exemplo, pautas originais do período em que trabalhou com o compositor Iannis Xenakis, figura-chave da música do século XX. A representar todo um momento de ruptura artística e sociopolítica, pré e pós-25 de Abril, surgem Sérgio Godinho — estão por aqui as marionetas da série Amigos de Gaspar, através da qual o músico colaborou com João Paulo Seara Cardoso, fundador do Teatro de Marionetas do Porto — e José Mário Branco, que é também o homenageado da Feira do Livro deste ano, a decorrer até dia 23 e cuja linha temática, ancorada na contestação através da escrita e da música, se articula com esta exposição.

Segue-se o músico, musicólogo e divulgador Jorge Lima Barreto, ligado sobretudo à música exploratória e experimental, a solo e em formações como os Telectu e Anar Band. Falecido em 2011, é dele o termo “musonautas”, que intitulava o seu programa na Rádio Comercial e que deu depois origem a um livro homónimo, aqui exposto juntamente com a sua obra escrita. A marcar a década de 80 estão os GNR. As “avarias” do título da exposição são uma referência ao tema de 26 minutos do primeiro álbum de estúdio da banda portuense, Independança (1982). “É um disco totalmente revolucionário no pop-rock português”, considera Paulo Vinhas. Entre Jorge Lima Barreto e GNR encontra-se Pedro Tudela, com uma ilha um pouco diferente e a representar determinados territórios da música electrónica, bem como a ligação entre música, artes visuais e performance.

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Caminhando para os anos 90 aparece Manel Cruz, que com os Ornatos Violeta introduziu uma nova forma de cantar em português. A sua ilha, construída pelo próprio, espelha bem a identidade sui generis do músico e ilustrador através de memorabilia pontuada por tiradas cómicas, como a fotografia dos operários Carlos e Chico que pintaram a porta da sala de ensaios onde os Ornatos fizeram o álbum de estreia, Cão!, e a quem ficaram a dever uma garrafa de whisky. A década de 90 é também assinalada com os incontornáveis Mind Da Gap, que a partir do Porto fizeram avançar o hip-hop nacional (sabe a pouco a passagem pelo hip-hop portuense feita na exposição).

Por fim, o intervalo temporal 2000-2010 é condensado numa ilha tripla em que são destacados músicos, artistas interdisciplinares e colectivos como a Soopa, comunidade criada por Jonathan Uliel Saldanha (HHY & The Macumbas, Fujako) e Filipe Silva, força transbordante e transformadora do circuito underground do Porto dos anos zero. A eles juntam-se nomes como Ghuna X, Motornoise, Mécanosphere, a dupla Von Calhau!, de Marta Ângela e João Alves, ou Gustavo Costa, actualmente um dos responsáveis pela associação cultural Sonoscopia. Apesar de o período 2000-2010 ter também o seu lugar na parede cronológica e de estar presente noutras partes da exposição, fica a sensação de que foi injustamente sintetizado e abordado pela rama, com pouca contextualização.

Na tal parede cronológica, abre-se espaço para algumas “micro-ilhas”, aponta Paulo Vinhas. São dedicadas a nomes como Pedro Abrunhosa, Repórter Estrábico ou Ana Deus (Três Tristes Tigres, Ban, Osso Vaidoso), que, no meio de tantos homens, merecia uma ilha das grandes por causa de todo o seu corpo de trabalho inquieto, inconformista e multiforme. Outro dos eixos paralelos de Musonautas, Visões & Avarias é a “imprensa livre e as rádios livres”, entidades independentes “de presilhas estéticas, económicas e partidárias” que ajudaram a alavancar e a nutrir alguns dos movimentos aqui apresentados, nota o curador. Inclusive antes do 25 de Abril, com a revista Mundo da Canção e o jornal Memória do Elefante, onde nos inícios dos anos 70 já se escrevia sobre Alice Coltrane ou Ornette Coleman.

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Para desenterrar este tipo de documentos ligados à arqueologia musical da cidade, a equipa de curadores passou meses em investigação e a desbravar arquivos, desde o Ephemera, de José Pacheco Pereira, ao da Biblioteca Municipal do Porto, passando necessariamente pelos acervos dos próprios artistas. “Os criadores foram inexcedíveis. Visitaram a montagem da exposição, ajudaram, envolveram-se”, diz Paulo Vinhas. Também por isso há várias histórias curiosas e pouco conhecidas dentro de Musonautas, Visões & Avarias. Como a história por trás do cartaz “Onde Está o Piano”, de Cândido Lima, que envolve o transporte de um piano entre dois continentes em plena guerra colonial. Fica o spoiler.

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