Viktor Orbán e a aparente surpresa comunista
A fanática obsessão antieuropeia dos comunistas portugueses levou a que os seus eurodeputados juntassem os seus votos ao que de mais repugnante existe na representação parlamentar europeia.
É cada vez mais notório que há uma doença política séria a corroer grande parte das democracias nacionais do leste europeu. Contudo, em nenhum lugar se atingiu ainda o grau de putrefacção institucional observável na Hungria. Viktor Orbán, que está longe de ser um homem intelectualmente destituído, concebeu e tem vindo paulatinamente a concretizar aquilo que ele próprio designa como um modelo de democracia iliberal. Trata-se de um tipo de regime de natureza liberticida, alheio a qualquer tipo de preocupação com a protecção dos direitos fundamentais e permeável ao exercício do autoritarismo. Acrescentem-se ainda a estas características a exaltação de um nacionalismo xenófobo, o gosto pela perseguição das minorias, a propensão para um tratamento ultrajante aos refugiados e aos migrantes. Para completar o ramalhete associamos ainda a prática despudorada do nepotismo, do clientelismo e de comportamentos corruptos. Parece uma caricatura mas infelizmente não é. Trata-se da situação presentemente vivida na Hungria, um Estado-membro da União Europeia.
Perante esta situação há muito que se vinham erguendo vozes críticas clamando pela adopção de uma atitude dura por parte das principais instituições europeias. Com o arrastar dos acontecimentos ia-se progressivamente instalando um compreensível cepticismo em relação à capacidade da União Europeia aplicar os mecanismos sancionatórios de que dispõe para reprimir comportamentos e práticas atentatórios dos princípios e dos valores de que se reclama e que a inspiram. A impunidade de que o Governo húngaro parecia beneficiar suscitava uma legítima incompreensão em todos quantos continuam a projectar uma elevada expectativa nos chamados ideais europeus. Essa impunidade, felizmente, começou a ser contrariada ontem no Parlamento Europeu de forma muito consistente.
Foi nesse sentido que uma maioria expressiva de deputados, correspondente a cerca de dois terços dos mesmos, votou a favor de um relatório elaborado por uma deputada Verde holandesa. Esse relatório propõe o accionamento dos mecanismos previstos nos Tratados tendo em vista o sancionamento de comportamentos adoptados por governos nacionais que deneguem ou contraditem o acervo de valores democrático-liberais consagrados na ordem institucional europeia. Esta votação constitui um sinal político de extraordinária importância. Numa altura em que por todo o lado emergem discursos e soluções políticas adversos à tradição demoliberal, não podemos deixar de sentir algum reconforto com a manifestação deste amplo entendimento. É por isso mesmo desejável que ele se perpetue na abordagem de situações de natureza diversa mas onde igualmente possam estar em causa os mesmíssimos valores e princípios que agora se declararam lesados. É provável, aliás, que o Parlamento Europeu, bem como as demais instâncias de decisão europeias se vejam confrontadas num futuro não muito distante com a necessidade de ajuizar casos não muito diferentes daquele que foi agora objecto de apreciação. Infelizmente são vários os governos europeus predispostos a seguir por muito ínvios caminhos.
A fanática obsessão antieuropeia dos comunistas portugueses levou a que os seus eurodeputados, em nome de uma anquilosada noção de soberania nacional, juntassem os seus votos ao que de mais repugnante existe na representação parlamentar europeia. Este comportamento pode escandalizar, mas não deve surpreender. Se há coisa que os comunistas nunca esconderam foi a sua radical aversão por todas as formas e manifestações do pensamento liberal. É por isso natural se não sintam obrigados a censurar quem igualmente as despreza. Para o marxismo-leninismo todo o edifício de princípios, valores e regras de inspiração liberal não passa de uma cínica construção formal destinada a tentar camuflar o confronto de classes que constitui a verdadeira estrutura e a explicação da História. A origem dos crimes perpetrados por todos os regimes comunistas radica precisamente nesta desvalorização do Estado de Direito e do primado da autonomia individual.
Orbán é um anticomunista feroz, propagandeia a visão de uma Europa etnicamente pura alicerçada nas referências religiosas do cristianismo, exalta um comunitarismo de índole reaccionária. Nessa perspectiva, um militante comunista só pode sentir repulsa por tal figura e pelas teses que propala. O que infelizmente os aproxima, sem nunca os identificar, é verdade, é justamente essa propensão antiliberal tão contrária ao melhor do espírito iluminista europeu. Esse é, aliás, o risco que correm todos aqueles que seja em nome do que for, nomeadamente de um pós-humanismo, se afastam do núcleo da tradição do racionalismo crítico que está por detrás, entre outras coisas, da noção de Direitos Humanos.
Este episódio também demonstra o seguinte: é totalmente insensato promover a absolutização da linha divisória direita/esquerda. É-o no plano da política nacional e ainda o é mais no contexto da política europeia. Hoje há outras linhas de demarcação tão ou mais importantes do que essa. O reconhecimento desse facto contribui para uma melhor compreensão da presente realidade política. Àqueles que auguram a inevitabilidade do triunfo dos demagogos, dos extremistas de todas as espécies, dos vendedores de ilusões simplistas, haverá sempre que lembrar uma lição básica: o simplismo só pode ser derrotado por um apelo ao poder argumentativo de uma razão capaz de explicar a complexidade e a profunda subtileza de tudo quanto é humano.