O cenário é idílico e inesperado — uma fundação com um centro de exposições de arte contemporânea no centro da planície alentejana, a milhas de distância de qualquer centro artístico europeu de renome. A Fundação Quetzal, dos coleccionadores holandeses Cees e Inge de Bruin, é aqui proprietária de uma herdade produtora de vinho, de um restaurante de luxo e deste espaço, que tem curadoria da filha do casal, Aveline de Bruin. A colecção que ambos reuniram é discreta e pouco conhecida, como é habitual na cultura do Norte da Europa. Vai-se mostrando pontualmente em exposições por todo o mundo, sem que exista, por exemplo, um museu ou um catálogo publicado sobre este acervo que, ao que se diz, inclui trabalhos de mais de 500 artistas.
Drawing Africa on the Map, como o título deixa adivinhar, inclui trabalhos em desenho de artistas nascidos no continente africano. O título possui um duplo sentido que reforça subtilmente a presença desta disciplina artística com o interesse que a arte contemporânea oriunda deste continente tem suscitado um pouco por todo o mundo nos últimos anos. A exposição, que acompanhou o festival Évora África que decorreu naquela cidade de 25 de Maio a 25 de Agosto (e que também incluía uma exposição de artistas contemporâneos africanos), prolonga no tempo um dos objectivos desse festival: dar a conhecer um conjunto de práticas artísticas que, se não relevam propriamente do assumir voluntarioso de uma identidade específica, negam a autonomia do objecto artístico de genealogia modernista e eurocêntrica a favor de uma narratividade social, política ou antropológica.
Apesar da omnipresença do desenho, esta narratividade pode, ou não, transbordar para outras disciplinas artísticas. Gareth Nyandoro, por exemplo, cuja obra suscitou a definição do conceito da exposição e a escolha dos outros artistas, apresenta aqui uma individual intitulada Ku4: um conjunto de peças complexas que assumem o formato da instalação. Uma cabana precária, caixas de folha que se abrem para mostrar imagens, uma suposta oficina de reparação de bicicletas e mesmo um grande desenho mural que ocupa uma parede da sala misturam técnicas de impressão elementares, como a frottage e a decalcomania, com um fazer artesanal, intuitivo, “pobre” porque apoiado na recuperação de materiais usados. Não está longe das impressões visuais proporcionadas pelos grandes subúrbios, favelas e bairros de lata que nascem metastaticamente junto das grandes metrópoles do terceiro mundo, e assume essa estética que nada tem a ver com a arte que se vê habitualmente nos museus.
Em Nyandoro radicam as duas outras salas da exposição, todas elas com obras pertencentes à colecção de Bruin-Heijn. Numa delas, William Kentridge, o artista sul-africano que há cerca de um ano mostrou um fantástico trabalho em vídeo na Anozero, a bienal de arte de Coimbra, assina um conjunto de pequenos filmes em animação encenando os seus dois alter-ego: Felix Teitelbaum, um artista, e Soho Eckstein, um homem de negócios. Os filmes, todos eles muito curtos e datados de entre 1989 e 2011, contam pequenas histórias onde as formas principais — a cabeça do capitalista, por exemplo, ou um gato preto, companhia do Sr. Eckstein — se vão metamorfoseando graças ao próprio processo da construção do filme animado. O traço, muito expressivo e evidente, vai deixando aparente, sobre o próprio fundo da imagem filmada, os erros, as emendas e os apagados que o autor foi fazendo. De certo modo, duplica as interrogações de Kentridge sobe o seu próprio lugar na sociedade sul-africana de hoje, as mesmas que já podíamos adivinhar noutros trabalhos seus.
Uma segunda sala reúne desenhos e aguarelas de Marlene Dumas e Moshekwa Langa: obras onde se nota a impulsividade própria ao desenho, que não apenas exige um tempo de reflexão significativamente mais curto do que o da pintura, como implica uma liberdade do fazer que não existe noutras disciplinas. Desenhar, afinal, começa sempre pelo traçado de uma linha no espaço, sem que ninguém diga nunca ao artista, à partida, que linha ou que espaço são esses. Dumas, também sul-africana, vive na Holanda há décadas, e percebe-se pela quantidade impressionante de obras expostas que a sua proximidade com o casal de coleccionadores é estreita. Langa possui uma linguagem mais próxima do onírico e do fantástico, para não mencionar a iconografia das narrativas tradicionais africanas que detectamos muito próximas do seu trabalho que, contudo, segundo a curadora, constitui antes de tudo o mais uma procura identitária pessoal.
A última peça, assinada por Bahia Shehab, é de montagem discreta, tanto que é preciso perguntar por ela para a vermos. Está numa parede alta, só visível em parte ora do exterior, ora do corredor que dá acesso às salas, e consiste na colagem de mil peças de vinil representando outras tantas formas de escrever o caracter árabe que significa “não”. A artista pesquisou em diversos contextos geográficos, da Espanha à China, e reuniu esta colecção de caligrafias — que também existe em livro — que representa a recusa de todas as ideias feitas sobre a sua identidade, duplicadas aqui pela palavra que deu origem às primaveras árabes há alguns anos. É uma peça poderosa que merecia sem dúvida melhores condições de exposição.