Lições a tirar da tragédia do Museu Nacional, no Rio de Janeiro
Existem, museu a museu, planos operacionais para prevenir e minorar os efeitos de catástrofes naturais e humanas?
Quase tudo foi dito sobre a dimensão da catástrofe ocorrida no agora destruído Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Uma perda irreparável, a cujo lamento nem sequer puderam escapar os paladinos das correntes que defendem estarem os museus ultrapassados, sobretudo, como no caso, os mais tipicamente coloniais (ou até imperiais), com colecções que espelham quase somente essas realidades, mesmo quanto à chamada recolha etnográfica – museus de elites europeias, adoptados depois por elites locais.
Também muito foi dito sobre responsabilidades, num previsível e de facto aviltante jogo de “passa culpas”. Em 2013, quando visitei aquele museu durante a Conferência Mundial do ICOM no Rio de Janeiro, já nele me impressionou um certo ar geral de vetustez e até abandono dos espaços, dos equipamentos museográficos e das próprias condições de conservação das colecções. Havia investigação, sim, mas tratada como as universidades costumam tratar os museus: simples quintais das traseiras. De então para cá, os cortes em pessoal e meios foram ainda mais draconianos (o orçamento foi reduzido para um décimo do que era nessa altura). E torna-se legítimo perguntar se um tal comportamento dos (ir)responsáveis políticos (e, neste caso, também universitários) não constitui pelo menos crime de negligência, com dolo eventual, do mesmo modo que assim se condenam condutores que possuam os automóveis sem condições de circulação e por esse facto provoquem o estropiamento ou a morte de pessoas.
Existem, pois, lições a retirar desta desgraça no plano geral das políticas museológicas e dos modelos de gestão dos museus. Mas pouco foi ainda dito sobre ensinamentos úteis nos domínios mais técnicos da prevenção contra tragédias. Atenta a responsabilidade associativa que circunstancialmente tenho, entendi fazê-lo, dirigindo-me principalmente ao universo dos museus europeus e perguntando aos meus colegas se poderemos nós estar confortavelmente sossegados nos nossos gabinetes quanto à preparação dos nossos museus, desde logo os museus nacionais em cada país, para fazerem face, dentro dos limites do razoavelmente possível, a catástrofes de origem humana ou natural.
A resposta aparente a esta pergunta pode ser dada, como foi o caso em Portugal, através de declarações tranquilizadoras, porém ocas, por parte dos organismos de tutela e dos responsáveis políticos. Mas a resposta real, essa, requer que se esclareça qual a situação relativa a um conjunto de questões bem mais concretas, tais como:
– Existem, museu a museu, planos operacionais com o objectivo específico de prevenir e minorar os efeitos de catástrofes naturais e humanas?
– Estão esses planos actualizados?
– Foram estes planos validados pelas autoridades nacionais responsáveis, como sejam os competentes departamentos dos corpos de bombeiros?
– Estão os certificados de conformidade emitidos por essas autoridades actualizados e são publicitados, conforme se exige a qualquer centro comercial ou simples bar aberto ao público?
– Existe, museu a museu, pessoal treinado para ligar com situações emergentes de catástrofes? Existem acções de formação regulares? Quando foi feita a última?
– Foram realizados simulacros de diferentes tipos de catástrofes? Com que regularidade? Quando foi feito o último?
– Existem planos específicos para colecções especiais, como é o caso dos chamados “tesouros nacionais”? Planos especiais referentes a aspectos tais como a localização dentro do museu, as rotas e o papel de cada um em caso de evacuação, a escolha de equipamentos de exposição especificamente preparados para o efeito, a construção e rápida disponibilização de contentores estanques, incomburentes e antichoque?
– Existem protocolos formais ou colaboração regular com agências especializadas em prevenção de catástrofes, tanto nacionais como internacionais (no caso do ICOM, o Escudo Azul)?
Tenho de confessar ter grandes dúvidas quanto à resposta positiva a estas questões na maior parte dos museus europeus, incluindo desde logo os museus nacionais. Diz-me o conhecimento destas matérias e diz-me sobretudo a experiência da vida que se actua nestes domínios sobretudo debaixo do princípio de “casa roubada, trancas à porta”, que penso ter tradução em todas as línguas do continente. Foi assim, por exemplo, no Abruzzo, em Itália, depois do pavoroso terramoto que quase destruiu a região de Aquila há cerca de uma década (6 de Abril de 2009). Ainda hoje, quem visita a região fica impressionado pela extensão da destruição. O centro histórico da capital foi praticamente abandonado pela população e por todo o lado continuam a ser vistas ruínas e gruas. O Museu Nacional, reinstalado precariamente num antigo matadouro, é agora um exemplo do que deve ser feito na prevenção anti-sísmica, tanto ao nível da salvaguarda e evacuação de visitantes, como da protecção de peças e colecções. Casa roubada...
Será pedir muito que se actue antes de as tragédias acontecerem? Provavelmente será, porque tal envolve em primeiro lugar uma cultura de prevenção que deve começar em tenra idade e que poucos de nós temos. Recordo por exemplo como me impressionou, na Guatemala, a preocupação de colegas meus e visitantes ao entrar em museus e verificar antes de tudo onde estavam os locais de refúgio em caso de sismo.
Ser previdente envolve depois medidas de gestão que o favoreçam. Ora, estas requerem algum dinheiro, é certo, mas são sobretudo incompatíveis com centralismos administrativos desresponsabilizantes e, na prática, paralisantes. Por isso, e embora não pareça, também por aqui passa a questão da autonomia de gestão dos museus nacionais em que o actual Governo se prepara (finalmente) para intervir. Esperemos que o faça quanto antes. As receitas geradas pelos museus e monumentos nacionais devem ser usadas neles mesmos, de forma solidária. Os directores desses espaços devem poder contratar bens e serviços, entre os quais os de prevenção contra catástrofes, de forma ágil e tendo em conta as realidades concretas no terreno. Tudo isto está contido num projecto de decreto-lei que foi neste Verão discutido com as associações do sector. Tratar-se-á de um pequeno passo, muito insuficiente para o que se desejaria. Mas a vida é também feita de pequenos passos, que podem ter grandes consequências.