A música de Bombino pertence a toda a gente e a ninguém

Deran é o magnífico álbum de regresso a casa do guitarrista tuaregue a que chamam o "Jimi Hendrix do deserto". Viajante mundo fora desde 2011, sentiu o apelo das raízes. "A minha intenção é mostrar a beleza do povo tuaregue, da sua música e cultura", diz ao Ípsilon.

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Cosmopolita que nunca se afastou de casa, Bombino, aliás Omara Moctar, tem um novo trabalho Richard DUMAS

Quando a música lhe chegava, muitas eram as vezes em que não sabia quem criara os sons que ouvia. O calor do deserto congeminava contra a identificação e as cassetes que Omara Moctar ouvia na paisagem árida de Agadez surgiam com os nomes das bandas e os títulos dos álbuns e canções demasiado esbatidas, apagadas. Alguns, conseguiu saber quem eram – tinham nomes como Jimi Hendrix ou Dire Straits –, outros continuaram por identificar. Porém, uns e outros, com nome ou sem nome, bem como os seus heróis Ali Farka Touré e Tinariwen, que sabia muito bem quem eram e que não precisavam de etiqueta identificadora, acabaram por fazer caminho nas cordas da sua guitarra.

A música de Omara Moctar, Bombino de nome artístico, guitarrista tuaregue em viagem constante mundo fora desde 2011, ano da edição de Agadez, o álbum que o revelou internacionalmente, é um rumor vivo da cultura milenar a que pertence e é, ao mesmo tempo, a voz de uma vida, a sua, e dos caminhos a que esta o levou. Está tudo ali, na guitarra que baila bamboleante sobre o ritmo – blues do deserto, chamam-lhe –, na guitarra prenhe de electricidade – Ali Farka e Jimi Hendrix nas proximidades -, está no dedilhar da acústica e na voz que se torna dolente perante a paisagem majestosa do deserto. Não foi preciso saber os nomes que o calor apagou para ser tocado por eles. “O isolamento que se sente no deserto não é um sentimento de solidão, antes uma ligação a todo o mundo à nossa volta. Pertence a toda a gente e a ninguém”, escreve na entrevista por email que concedeu ao Ípsilon, com Deran, o novo álbum, como pano de fundo.

O mais recente álbum do músico nigerino é o disco de um regresso. O regresso do cosmopolita que, por mais longe que estivesse, nunca se afastou de casa; o do músico que tem consciência do seu talento e do cunho pessoal que conseguiu imprimir à sua obra, mas que sabe igualmente a responsabilidade que tal talento lhe faz cair sobre os ombros. “Compreendo que aquilo que me torna importante enquanto artista é ser um representante da cultura tuaregue à volta do mundo. Assim sendo, tenho que me sentir ligado a ela em todos os momentos e tenho que saber que estou a representá-la o melhor que possa” – Agadez arrancava, não por acaso, com Ahoulaguine alakine (Saúdo o meu país).

Depois de Nomad (2013), produzido por Dan Auerbach, dos Black Keys, no seu estúdio em Nashville, e de Azel, que nasceu em Woodstock, Nova Iorque, sob o comando de David Longstreth, dos Dirty Projectors, Bombino sentiu era tempo de procurar o âmago da sua música, sem guias exteriores. “Considerando que os dois álbuns anteriores foram ambos muito influenciados pelos produtores respectivos, quisemos criar algo mais puro neste disco, directamente do coração”, assinala.

Gravado no Studio Hiba, nos arredores de Casablanca, pertença do rei marroquino Mohammed VI (aparentemente, o monarca é um grande fã), Deran não faz tábua rasa de tudo aquilo com que Bombino foi contactando nos anos em viagem pelo mundo – em Tehigren está presente o “tuareggae” que experimentou em Azel, fruto das audições de Bob Marley desde a juventude e da proximidade musical que encontrou entre o reggae e a música tuaregue; e os teclados que Auerbach acrescentou ao seu som em Nomad também fazem aqui e ali a sua discreta aparição.

Contudo, sem a supervisão de um produtor “estrela”, privilegia-se uma versão mais crua e imediata, mais realista, se quisermos, daquilo que é a música de Bombino quando o vemos actuar com a banda em palco, como temos tido a sorte de testemunhar nos vários concertos que o músico deu em Portugal ao longo dos anos. “Foi para mim uma experiência maravilhosa gravar no Studio Hiba em Casablanca. Ainda que não estivesse no Níger, as proximidades culturais entre Marrocos e o norte do Níger, de onde sou originário, fizeram-me sentir confortável e em casa. Podíamos ver o alfabeto tifinague [berbere] à nossa volta, e os costumes árabes têm muito em comum com os nossos. Além disso, a comida era extraordinária”, descreve.

Deran foi gravado com a banda que acompanha Bombino, composta pelo também tuarege Illias Mohammed na guitarra, pelo mauritano Youba Dia no baixo e pelo baterista norte-americano Corey Wilhelm, aos quais se juntaram o percussionista marroquino Hassan Krifa e duas primas do guitarrista, as cantoras Anana ag Haroun e Toulou Kiki. Eric Herman, o manager que é visto como “parte da família”, actuou como produtor exactamente da forma que Bombino desejava – “guiou as sessões de forma gentil e sem impor nada à música, deixando que aquilo que nascia naturalmente ocupasse o seu lugar”. Recordando o período de gravações, Bombino fala de dias “inspiradores e descontraídos” – “senti ali as raízes da minha música”. Explica então que o “ambiente que nos rodeia tem grande influência no momento de criar música”. Di-lo para nos falar daquele que verá sempre como o seu lar. “Mais que tudo o resto, adoro tocar no deserto, onde a música carrega consigo uma certa magia. Gosto de recriar essa experiência o mais fielmente possível nos meus concertos e nas minhas gravações”.

Quem não o conhece, quem não o tem no sangue – os avós de Bombino viveram toda a vida enquanto pastores nómadas, percorrendo as rotas do Sahel, espaço geográfico delimitado pelo Saara, a norte, e a savana sudanesa, a sul –, pode ver o deserto como espaço imponente, certamente, mas perigoso e ameaçador. Para Bombino, é uma “casa espiritual” e um espaço de memória. “Recordo muitos momentos maravilhosos com a minha família e amigos, sentados à volta de uma fogueira a tocar música e a apreciar a companhia uns dos outros durante toda a noite. É por isso que é tão belo e importante para mim, um lugar a que irei sempre regressar para preencher a minha alma da inspiração de que necessito para continuar com a minha vida no mundo moderno”.

A guitarra, o exílio e... Dire Straits

Bombino pegou na guitarra pela primeira vez aos 10 anos. Nascera nos arredores de Agadez, no Níger, mas estava então num campo de refugiados na Argélia, para onde os pais haviam fugido quando da revolta tuaregue do início dos anos 1990. Aprendeu a tocá-la sozinho e, mais tarde, enquanto estudava com um famoso guitarrista tuarege, Hada Bebe, ganhou a alcunha Bombino – é uma corruptela do nome que Bebe chamava ao jovem aprendiz, “bambino”. Regressado ao Níger, foi pastor, passando os longos dias a tocar perante a imensidão do deserto enquanto os rebanhos se alimentavam. Foi também guia turístico, mostrando as mesmas paisagens aos estrangeiros de visita ao país. Paralelamente, as suas actuações com o Group Bombino que liderava em cerimónias tradicionais na região começavam a criar à sua volta a aura de guitarrista extraordinário, admirado por todas as gerações de todas as tribos tuaregues.

Para a sua abordagem à guitarra, e para a sua atitude perante a música, contribuíram vários nomes. Dois são óbvios, os malianos Ali Farka Touré e Tinariwen. Foram a sua primeira introdução à electrificação da música do Sara. “Eles eram como deuses para mim enquanto crescia. Ver como eram venerados em África, e até fora de África, e saber que eram pessoas da mesma região que eu, também criados na pobreza, sem recursos ou outras vantagens, encorajou-me e fez-me ver que era possível ter uma carreira como esta”. Da música ocidental, reteve dois nomes. Um também é óbvio, ou não tivesse ele sido apresentado nesta zona do mundo como “Jimi Hendrix do deserto”. Do mago de Are you experienced? retirou a relação profunda que aquele tinha com a guitarra: “Abraçava a guitarra como se fosse um filho. Isso tocou-me de uma forma muito forte, pois compreendo a profundidade da relação que podemos estabelecer com o nosso instrumento”.

Quanto ao outro nome que destaca habitualmente, é uma surpresa e dificilmente o identificaremos ao ouvir a sua música. Contudo, também com os Dire Straits de Mark Knopfler aprendeu o guitarrista. “Quando era jovem, impressionou-me a relação tão próxima entre os membros da banda”, recorda. “Respondiam uns aos outros de uma forma tão natural, quase como se não estivessem a pensar, mas simplesmente a tocar, como um bando de pássaros a voar juntos que mudam de direcção ao mesmo tempo”.

Reparámos no nome dele pela primeira vez enquanto protagonista de Guitars From Agadez Vol.2, editado pela Sublime Frequencies em 2009 – nessa altura, o guitarrista vivia novamente enquanto refugiado, desta vez no Burkina Faso, após a eclosão em 2007 de novo conflito no seu país, durante o qual os músicos tuaregues foram fortemente perseguidos. As autoridades nigerinas consideravam os guitarristas incitadores da rebelião, Bombino respondia que a sua guitarra não era uma arma, antes “um martelo com qual ajudo a construir a casa do povo Tuaregue”. Contudo, quando dos dois membros da sua banda desaparecem para sempre, presumivelmente assassinados pelo exército do Níger, Bombino vê-se obrigado ao exílio. É lá que o realizador americano Ron Wyman o encontra, fazendo dele a personagem principal do documentário Agadez, the Music and the Rebellion. Estreado em 2010, foi fundamental para a ascensão que se seguiria, e que acompanhou o fascínio crescente no Ocidente pelos blues do deserto de Tinariwen, Tamikrest ou Mdou Moctar.

No ano seguinte, o álbum Agadez, que rapidamente escalou ao topo das tabelas de venda de World Music do iTunes, por exemplo, revelou-o ao resto do mundo – nesse mesmo ano toca nos Estados Unidos e na Europa, incluindo a passagem pelos concertos de Verão do Centro Cultural de Belém, e torna-se um fenómeno abrangente que tanto partilha palco com uma lenda como Stevie Wonder como actua para as franjas hipster de Brooklyn.

Desde o momento que começou a partir em digressões internacionais, sentiu estar a cumprir uma missão, a de ser embaixador da cultura tuaregue. “É uma comunidade muito pequena quando comparamos a sua dimensão relativamente ao resto do mundo, mas herdámos uma beleza e sabedoria extraordinárias. Sinto que é minha responsabilidade mostrá-la ao mundo, ainda que muitos tuaregues possam não o apreciar, ainda que muitos no mundo não façam qualquer ideia sobre o que são os tuaregues”. Nos anos seguintes o homem que, apesar de fluente no tamasheq natal, em árabe e francês, “raramente fala” – “em vez disso, toca guitarra”, descreveu David Longstreth –, correu palcos e palcos, país após país. Foi embaixador exemplar e músico aberto ao diálogo musical em estúdios americanos. A casa, as suas raízes, foram, porém, um chamamento constante.

Deran é o momento em que regressa, transformado – “os músicos são esponjas que absorvem influências de tudo o que os rodeia, sem estarem conscientes disso” – mas igual a si mesmo. No contexto actual, de ódios expostos claramente, de nacionalismos fascistas escancarados no coração da Europa, de fronteiras erguidas com sôfrego sadismo, costas voltadas aos corpos que se afogam no Mediterrâneo, voltar às raízes e mostrá-las como generosa oferenda, tornou-se para Bombino ainda mais necessário. “A minha intenção é mostrar a beleza do povo tuaregue, da sua música e cultura, o que pode muito facilmente ser visto como apenas mais um exemplo das centenas de comunidades afectadas actualmente pela questão migratória. Cada povo, cada pessoa, na verdade, carrega consigo um valor incomensurável e cada um tem uma história para partilhar com o mundo”, escreve ao Ípsilon, antes de concluir: “Mais do que nunca, é importante que façamos tudo o que estiver ao nosso alcance para convencer as pessoas a ouvirem-se mutuamente. Precisamos desse apreço e respeito mútuos, ou tudo se tornará pior em vez de melhor".

Iluminado pela sua guitarra eléctrica feérica ou com a acústica e as percussões a guiarem o caminho, como nas noites à volta da fogueira no deserto, o novo álbum tem canções dedicadas aos tuaregue e à sua língua, o tamasheq, tem títulos como Tehigren [As árvores], Tenesse [Ociosidade], Ouhlin [O meu coração arde] ou Adouagh Chegren [No topo da montanha]. Deran, que é, em tamasheq, uma saudação de boas vindas, é a casa de Bombino. Omara Moctar é um anfitrião caloroso.

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