Todo o conhecimento, para todos
Com os desafios que temos à frente — da automação ao autoritarismo — a universidade não pode abandonar a sua ambição universalista. Disso depende provavelmente a democracia, a nossa capacidade de lidar com a mudança e o nosso papel na globalização.
A partir de hoje cerca de cinquenta mil jovens, 52% dos jovens portugueses da sua idade, vão começar a tratar das papeladas para se inscreverem nas universidades, institutos e escolas superiores para que foram selecionados. Irão, talvez, condicionados por um discurso acerca do mercado de trabalho e da empregabilidade, dos cursos que dão dinheiro e dos que dão poder e influência e todas as outras obsessões com que a sociedade, incluindo pais e políticos, pretende delimitar a universidade. Sempre que tenho oportunidade, tento dizer-lhes o contrário. Não que o resto não seja importante. Mas a universidade, na sua essência, tem a ver com ideias: ideias sobre como as coisas são, sobre como elas deveriam ser, ideias sobre as ideias.
A universidade é ela própria uma ideia, e uma das melhores que já tivemos: a de construir um lugar exclusivamente dedicado ao conhecimento. Isso, e as festas e os amigos e os namoros. Mas só quem leva a sério a radical liberdade de conhecer e discutir ideias que a universidade proporciona poderá encontrar em si a capacidade de levar a sério as outras coisas da vida prática pós-universitária e a possibilidade de ser bem sucedido nelas.
A ideia mais genial dentro da ideia de universidade está na resposta à pergunta: que conhecimento e que ideias fazem parte da universidade? Todas. Desde que na Idade Média se começou a chamar universidade a este tipo de lugar, é o seu universalismo que tem sido a chave para a entender. Universalismo de conhecimento, entenda-se (e por isso quando digo aqui universidade quero com esse termo englobar também o ensino politécnico, artístico, e todas as formas de ensino superior).
O universalismo é de tal forma importante para a universidade, e a universidade para a humanidade, que me pergunto mesmo se a humanidade não precisa, para os seus atuais desafios, de ser mais ambiciosa em relação à universidade, juntando ao seu universalismo de conhecimento dois outros universalismos: de acesso e temporal. E penso que, se a resposta for positiva, Portugal deve tomar passos decisivos para poder cumprir com ela.
Disse no início que mais de metade dos jovens portugueses de 18 anos entraram ontem na universidade. Quando eu entrei na universidade, há 25 anos, éramos apenas entre um décimo e um quinto a fazê-lo — e considerávamo-nos com razão parte de um grande movimento de generalização do ensino superior (que ainda na geração anterior, antes do 25 de abril, praticamente não chegava às classes baixas).
Quando falo de ambicionar a universalidade de acesso, hoje, falo disto: pensar seriamente sobre, no espaço de uma geração, estender o ensino obrigatório até ele incluir pelo menos um ano de frequência universitária (incluindo as suas variantes politécnicas, artísticas e profissionalizantes) para toda a gente. Há coisas que só se aprende na universidade e que são hoje em dia cada vez mais importantes: mobilizar grandes quantidades de informação; distinguir entre formas de obter essa informação, validá-la, e apresentá-la; saber relacionar teorias filosóficas, políticas, sociais e científicas; escolher os seus professores e criar o seu próprio currículo; ganhar habituação à troca de ideias de uma forma sustentada e sistemática. Se me disserem que tudo isto se pode fazer na net, dir-vos-ei que não se pode fazê-lo convivendo num ambiente humano e pessoal, intergeracional e interclassista. Cara a cara, e em edifícios onde nos sintamos em casa.
Este último aspecto é crucial para o terceiro universalismo de que vos falava. O alargamento da experiência universitária a todos, que podemos atingir numa geração, é essencial para que possamos passar outra mensagem vital para essa mesma geração e as que vierem a seguir: a universidade é a vossa casa sempre que quiserem. Sintam-se à vontade para voltar a ela, sem pedir licença, quando a vossa profissão mudar, quando precisarem de aprender mais, quando tiverem dúvidas.
Para conseguir assegurar estes três universalismos, as universidades precisarão de se adaptar para serem mais acolhedoras, contrariando a imagem de inacessibilidade e exclusão que para muita gente — não se iludam — elas ainda têm. Tal como é importante que as universidades façam aquilo para que elas servem hoje em dia, é importante que elas façam cada vez mais aquilo que algumas já vão começando a fazer: abrirem-se à comunidade e proporcionar diversos tipos de experiência de conhecimento a um público cada vez mais diverso.
Com os desafios que temos à frente — da automação ao autoritarismo — a universidade não pode abandonar a sua ambição universalista. Disso depende provavelmente a democracia, a nossa capacidade de lidar com a mudança e o nosso papel na globalização.
Portugal chegou tarde ao acesso mais generalizado à universidade (e quando chegou tornou estupidamente caro o acesso a mestrados e doutoramentos). Seria bom que, em vez de chegarmos de novo atrasados, antecipássemos o tipo de universidade de que o futuro vai precisar. Talvez isso até nos ajudasse a encontrar o caminho para o tipo de economia que precisamos de vir a ser. Mas esse é um ganho que só vem se antes tivermos levado a sério aquilo para que a universidade serve.