Antes de 2010, Cristiano Saturno, fascinado por “tudo o que se move no ar”, nunca tinha visto uma aurora com os seus próprios olhos, mas tudo mudou numa noite na Lapónia finlandesa, onde diz ter levado uma “bofetada de espanto”. “Estava sozinho em cima de um rio gelado no meio de uma floresta, o silêncio era total, apareceu uma aurora e tive uma epifania. Sinto que essa noite me mudou a vida.” O momento vivido na Finlândia suscitou em Cristiano uma paixão pelas auroras boreais e levou-o a pesquisar sobre o fenómeno natural, o que o fez interessar-se pelos “caçadores de auroras”. “Fiquei meio obcecado”, confessa ao P3, apresentando-se, sempre que tem a possibilidade, como “caçador de auroras”.
Dessa obsessão nasceu a ideia de fazer um documentário, que ficou em germinação até 2017, quando Cristiano saiu de Portugal para se juntar à família no Canadá. “Fiz uma pausa na minha actividade como jornalista. Comecei a sentir que chegara o momento para concretizar essa vontade de fazer um filme sobre auroras boreais”, conta. O que é que o movia? “[Fazer] qualquer coisa minha, uma coisa solta e livre, onde eu pudesse dizer e filmar o que me apetecesse.”
O resultado chama-se Sarapanta, documentário de 43 minutos rodado ao longo de 44 dias no Alasca e estreado, em Agosto, no festival Spirit of the North, na British Columbia, região do Oeste do Canadá. O documentário não procura ter “uma abordagem científica da aurora”, sublinha o autor. “Eu não falo de partículas ou ventos solares, interessam-me mais as emoções, o deslumbre, a procura de uma nova luz”, afirma Cristiano, que na sua página de Facebook deixa uma pista: “Sarapanta sugere a necessidade para a contemplação e oferece um convite para escapar do pandemónio da informação confusa desta era do touchscreen.”
Depois de British Columbia, o documentário foi também exibido em Yukon, região imediatamente a norte. Cristiano diz-se “feliz” com os veredictos que tem recebido e que os mesmos lhe dão “alguma confiança”. “Não venho do cinema, não tenho curso de cinema, sou um cromo que anda por aqui. Sou apenas um jornalista curioso e apaixonado por auroras. Sou um tipo que gosta de vídeo e de entrevistar pessoas. Sei bem qual é o meu lugar.”
Ainda não existe data de estreia em Portugal, pois o portuense quer “perceber se alguém terá interesse nisso”. Sarapanta é uma produção independente que o obrigo a abrir os cordões à bolsa. “Agora vou tentar ter algum retorno, eventualmente encontrando um patrocinador ou vendendo os direitos a uma televisão, por exemplo”, delineia.
Pensado no Canadá, realizado no Alasca
Inicialmente, Sarapanta era para ter sido rodado no Canadá, mais especificamente em Yellowknife — considerado o melhor local do mundo para ver as auroras. Mas o plano foi alterado. Sem “pachorra para hotéis”, Cristiano percebeu que Yellowknife não seria tão viável em termos financeiros e que não tinha muitas escolhas de alojamento em zonas isoladas. “A caça às auroras é uma actividade bastante solitária. Tu não queres gente à tua volta, não queres gente com medo dos ursos ou com frio ou a queixar-se que não há wi-fi na montanha”, diz. Além de se querer isolar das pessoas, Cristiano procurou fazer o mesmo em relação à “poluição luminosa”, para melhor observar as auroras. “Estava fora de questão ficar alojado em cidades ou povoações com candeeiros nas ruas ou faróis de automóveis de um lado para o outro”, faz saber. “Precisava de silêncio e solidão para tentar planar e meditar durante todo esse tempo.”
A solução de Cristiano passou pelo canto mais a noroeste da América do Norte. “Eu sabia que algumas zonas do Alasca também são excelentes para captar auroras e reparei que abundavam opções de alojamento em cabanas no meio da floresta, sem água canalizada, debaixo de um céu tremendo”, diz. Como se de um eremita tratasse, Cristiano ficou a viver em cabanas no interior do Alasca, longe das povoações. O dia-a-dia de filmagens dependia das nuvens, contra as quais foi travada uma luta todos os dias: “Para caçar auroras, preciso que o céu esteja limpo, descongestionado. As auroras movem-se acima das nuvens. Se há nuvens, é a morte do artista: não consegues ver auroras. E isso aconteceu-me em alguns dias.” As nuvens acabaram por ser a maior adversidade a nível psicológico que Cristiano enfrentou. “Um tipo fica maluco, desesperado, amuado com o céu. Cheguei a viajar centenas de quilómetros num só dia, por estradas cheias de gelo, para conseguir chegar, à noite, a locais onde a meteorologia previa céus mais limpos”, relembra.
Por vezes, para chegar aos locais com céu limpo, Cristiano teve que embarcar em “viagens de dias longe da cabana, a dormir no carro, no meio do nada, em sítios sem ninguém, absolutamente incríveis”. De certa forma, as viagens até acabaram por jogar a favor do realizador. “Se, por ventura, encontrava povoações com cafés ou bares, aproveitava para fazer entrevistas com as pessoas. Pedia-lhes para me falarem sobre a aurora. Essas vozes que trouxe comigo foram fundamentais para o filme”, aponta.
Nas ocasiões em que as nuvens não apareceram, Cristiano poupava-se aos quilómetros e ficava na cabana, a partir de onde conseguia ver as auroras. “Nesses casos, bastava esperar que a noite chegasse e estar atento ao céu”, conta.
Além das nuvens, as baterias da câmara foram a outra grande dificuldade. “Uma bateria da câmara, em temperaturas normais (20 graus, por exemplo), pode durar muitas horas ou até dias. Com 26 graus negativos, por vezes dura apenas alguns minutos”, explica Cristiano.
De “uma ideia no papel” a um sonho concretizado
Para tornar Sarapanta realidade, Cristiano Saturno não teve qualquer tipo de apoio financeiro. Na verdade, revela, nunca chegou a procurar porque, se o fizesse, teria de se condicionar à vontade dos outros. “Eu não tenho pachorra para esperar pelos outros. Não quero que um tipo qualquer engravatado sentado num escritório decida quando, como ou onde é que eu posso ir contemplar o céu. Tudo isso levaria a que o filme nunca mais arrancasse e nunca se traduzisse numa realidade. Ficaria apenas uma ideia no papel, um sonho por concretizar, matéria para frustração”, afirma Cristiano, que com o seu dinheiro investiu em vários elementos importantes para a concretização do documentário, como a viagem de avião, a câmara, os direitos da música, o alojamento e a alimentação.
Cristiano esteve a cargo das filmagens, das entrevistas, da edição e da montagem do documentário, e, além dos próprios entrevistados, contou com alguns contributos para outras tarefas. Um grupo de sete pessoas ajudou no departamento do som, desde o restauro do áudio das entrevistas, a transcrição das mesmas e a música. A criação do poster e do genérico de Sarapanta foi da responsabilidade de João Pombeiro, “um anjo que caiu do céu”, considera Cristiano.
Como foi feita a preparação para as filmagens em condições adversas? “A nível técnico, pesquisei bastante sobre que material usar para conseguir captar a luz das auroras e gerir tudo isso em circunstâncias peculiares: com 26 graus negativos, por vezes com neve até ao pescoço e muitas vezes longe de electricidade durante dias”, responde Cristiano, que não estranhou as temperaturas negativas por já ter vivido o inverno canadiano. “Sei bem como proteger-me ou evitar os erros que podem ser trágicos.”
“Planar num assombro libertador”
Cristiano Saturno já estava a habituado a ver auroras, mas o Alasca ainda tinha uma surpresa reservada para o português, que conseguiu ver auroras em pouco mais de 30 dias de filmagens: foram três as noites em que conseguiu ver aquilo que no Alasca é conhecido por “jackpot". “São as raras noites em que as auroras estão mesmo muito activas: preenchem o céu inteiro, movem-se e mudam de forma com muita rapidez”, explica ao P3. “Primeiro, sentes que todas as pessoas do mundo estão no local errado e deviam estar ali a ver aquilo. Depois, pensas que é uma injustiça nunca ninguém te ter avisado que coisas assim acontecem no planeta."
Fora de Sarapanta, o “jackpot” é uma experiência que só vai poder ser transmitida por palavras: “O meu filme tem umas auroras que me agradam, mas não consegue mostrar um jackpot. Nenhum filme consegue. Nenhuma fotografia é capaz. Aquilo é mesmo muito intenso e excepcional.”
Depois de “44 dias a olhar para o céu”, Cristiano diz que ficou “completamente” apaixonado pelo Alasca, que caracteriza como “imenso, selvagem, estupidamente belo”. “Fiquei doido com aquilo. Troquei por duas vezes o meu voo de regresso”, revela, considerando que foi a “melhor viagem” que já fez.
Longe do ritmo frenético das cidades, Cristiano Saturno sentiu-se “longe e desligado do mundo”, condição que o deixou a “planar num assombro libertador”. “Quando me vi sozinho (ou apenas com um amigo) no meio do nada, longe de tudo, em silêncio, a ver o céu a explodir e a bailar em cor, senti que era ali mesmo que eu queria estar”, rejubila. “Não vês ninguém, estás entregue à natureza, aos elementos, não há rede de telemóvel. Parece que enfeitiça. Ao mesmo tempo é perigoso.” É com base na sua experiência que o realizador diz aquilo que pretende com Sarapanta: “Partilhar um espanto e essa necessidade que me parece urgente. É preciso voltar as costas à cidade, desligar os smartphones, apagar os touchscreens e seguir estrada fora à procura de algo novo, de um deslumbre, de uma surpresa luminosa que nos faça estremecer e sentir vivos.”