FMI na Argentina: A 21ª entrada limpa sem saída à vista
A Argentina aderiu ao FMI em 1956 e beneficiou de 20 programas de assistência durante 35 anos. A mensagem parece clara, porquê seguir a mesma receita se o resultado é sempre o mesmo?
O Presidente da Argentina, Mauricio Macri, fez um discurso em directo da Casa Rosada para o YouTube na quarta-feira, 29 de Agosto. O discurso de 1:43 minutos, anunciava que a Argentina tinha chegado a acordo com o FMI para acelerar o desembolso de fundos de forma a que a Argentina pudesse reduzir a incerteza nos mercados. Em Junho de 2018, a Argentina tinha assinado um contrato de empréstimo com o FMI, no que constitui o maior resgate de sempre da história do FMI, no valor de 50 mil milhões de dólares. Já havia recebido 15 mil milhões de dólares desse empréstimo. Com o novo (alegado) acordo, receberia mais cedo os restantes 35 mil milhões de dólares que originalmente foram disponibilizados como instrumento cautelar, i.e., para impressionar os mercados pela “força”.
O anúncio, inesperado, teve o efeito contrário ao pretendido, levando à depreciação abrupta do peso argentino em cerca de 17%. A moeda argentina acumula uma depreciação de 76% face ao euro desde imediatamente antes da eleição de Macri a 10 de Dezembro 2015 até ao presente. O Banco Central reagiu no dia seguinte, 30 de Agosto, de forma ortodoxa, aumentando a taxa de juro de 45% para 60%, assegurando que manterá esse nível de taxa de juro até Dezembro, para combater os especuladores. Esse nível de taxa de juro, quando a inflação será de cerca de 30%-35%, não deixará de ter consequências na actividade económica.
Segundo Constantin Gurdgiev, entre 1956 e 2017, a Argentina teria estado sob programas (resgates e linhas de crédito) do FMI em 40 desses 62 anos. O FMI indica que a Argentina aderiu ao FMI em 1956 e beneficiou de 20 programas de assistência durante 35 anos, no período compreendido entre 1958 e 2006 (49 anos). A mensagem parece clara, porquê seguir a mesma receita (resgates do FMI) se o resultado é sempre o mesmo?
O 21º programa de assistência, de Junho de 2018, constitui também o 36º ano em que a Argentina está sob um programa de resgate do FMI nos últimos 63 anos. Note-se que o período mais significativo em que a Argentina não esteve num programa de resgate do FMI ocorre após a última bancarrota, com o presidente de Fernando La Rua a abandonar a presidência e a fugir de helicóptero do Rosada em 20 de Dezembro de 2001.
Nessa altura, a Argentina declarou uma moratória e entrou em incumprimento. Seguiram-se os três mandatos do casal Kirchner, em que é reestruturada a dívida do país contra a vontade dos credores.
Depois do trauma dos anos 90 com a intervenção do FMI na Argentina, é lamentável que o país volte agora à mesma situação. O partido e o governo Macri, próximo dos EUA, adoptou uma política económica agressiva: iniciou uma processo legal contra o governador do Banco Central por delapidação de património público, devido à forma como o Banco Central procurava evitar a depreciação do peso; forçou esse governador a demitir-se; chegou a um entendimento para pagar integralmente a dívida antes reestruturada a um fundo abutre (que, após a entrada da Argentina em incumprimento em 2001, tinha adquirido essa dívida no mercado secundário por uma fracção do seu valor nominal); liberalizou os movimentos de capital e controlos de câmbio, deixando o peso depreciar-se 29% poucos dias após tomar posse; e, a partir de 2016, contraiu um montante elevado de dívida em dólares, inclusive dívida a 100 anos. Dificilmente poderia ter feito pior gestão macroeconómica. Teria a expectativa que somente era possível controlar a inflação liberalizando os movimentos de capital e contraindo empréstimos em moeda estrangeira. Mas era uma aposta que se sabia arriscada e que aparenta ter sido fatal.
A “História não se repete mas rima”. A Argentina declarou a independência em 1816, emitiu dívida a 46 anos em libras em Londres em 1924. Em 1825, quando o Banco de Inglaterra aumenta as taxas de juro, a Argentina passa a ter dificuldade em cumprir o serviço de dívida e em 1827 entrou em incumprimento. Desde a sua independência, entrou em incumprimento da sua dívida em moeda estrangeira por 8 vezes e da sua dívida doméstica por 5 vezes.
Algo similar ocorre agora, quando um ano após a emissão de dívida a 100 anos, a Argentina enfrenta dificuldades após sucessivos aumentos da taxa de juro pela Reserva Federal dos EUA.
A dívida externa do país, que era muito baixa antes de 2015 já representará cerca de 45% do PIB. No que se refere à dívida pública, 80% denominada em dólares, a Oxford Economics estima que, às taxas de câmbio actuais, poderá representar 90% do PIB no final do ano.
A taxa de juro da dívida pública da Argentina a 10 anos em dólares, supera agora os 11%.
Embora a dívida pública da Argentina seja mais baixa do que a de Portugal ou da Itália, esse país apresenta défices público e externo muito elevados e está sujeito a taxas de juro domésticas e externas muito mais elevadas. Por conseguinte, se se confirmar a previsão acima referida, a Argentina dificilmente escapará da actual espiral, mesmo com a ajuda do FMI.
Em suma, perfila-se no horizonte um cenário de instabilidade macroeconómica e mesmo a possibilidade de entrada em incumprimento, com novo episódio de reestruturação de dívida.
O dólar é a moeda de reserva internacional por excelência. De acordo com o FMI, o dólar representa 62,5% das reservas de divisas dos bancos centrais, isto é, 6,5 biliões de dólares (35% do PIB dos EUA). Uma parte dessas reservas estará aplicada em títulos de dívida do Governo Federal dos EUA, remunerada com juros, é certo, e preservando o poder de compra. Mas, além dessas reservas oficiais, o dólar é também utilizado como reserva de valor em países como a Argentina onde a população guarda em dólares e outra moeda estrangeira um montante estimado, em 2016, em cerca de 400 mil milhões de dólares, o que representará mais de 100% do PIB desse país na actualidade.
Em resultado do estatuto do dólar (e do euro, em menor grau) como reserva internacional, a política monetária dos EUA tem efeitos significativos em economias como a da Argentina.
De facto, notam-se as repercussões do “normalizar” da política monetária dos EUA, em que esta se torna algo mais restritiva, política iniciada pela Reserva Federal ainda sob a presidência de Janet Yellen e continuada sob a presidência de Jerome Powell, que se traduz no aumento da taxa de juro de referência e na retirada de liquidez. E esses efeitos notam-se apesar da política monetária dos EUA ser ainda relativamente acomodatícia.
Assim, economias emergentes, como a Argentina, em que o dólar é utilizado como reserva de valor, ou com elevada dívida em dólares, vêem as suas moedas depreciarem-se. O movimento contra essas moedas será reforçado por fundos financeiros que aproveitam a oportunidade para especular contra essas economias.
Mas não são somente os especuladores os responsáveis. As empresas e a própria população da Argentina, cansada de taxas de inflação elevadas e de depreciação acelerada da sua moeda, descrente da política financeira de sucessivos governos procura, quando pode, trocar os seus pesos por dólares.
Se a crise internacional nos mercados emergentes se agravar, a Reserva Federal poderá vir a interromper o rumo mais restritivo da sua política monetária ou mesmo adoptar uma política monetária mais acomodatícia. Contudo, tal decisão poderá chegar demasiado tarde para a Argentina.