Europa: o próximo combate
O verdadeiro combate vai ser entre a abertura e o fechamento, entre nós e os outros ou nós contra os outros. Entre uma globalização regulada e o proteccionismo do salve-se quem for mais forte.
1. A rentrée europeia não se adivinha fácil. Aliás, nada na Europa se adivinha fácil, com governos e partidos políticos a prepararem-se para um ano eleitoral europeu que será diferente de todos os outros desde que o Parlamento Europeu é eleito directamente pelos cidadãos (1979). As eleições estão marcadas para finais de Maio de 2019. A campanha vai arrancar neste Outono. Já assistimos às primeiras salvas. Os grandes protagonistas já estão no terreno. Angela Merkel, com o seu método habitual, partiu para uma visita a três países de África, com mil perguntas para esclarecer. Para ela, a ideia de que o problema das migrações só se resolve à medida que África se for desenvolvendo é mais do que um mero slogan que os europeus têm sempre à mão quando não têm resposta para os problemas imediatos. Enquanto a fronteira do Mediterrâneo entre dois continentes geográfica e historicamente tão próximos for aquela onde se regista o maior desnível de riqueza do mundo, com ou sem a guerra na Síria, o problema continuará a existir. E a mais triste das constatações é que os governos europeus não aprenderam nada com a crise dos refugiados que abalou a Europa nos últimos cinco anos, de tal forma que fez da imigração o tema político mais controverso da agenda europeia, aquele que esteve na origem (não foi o único) das profundas transformações da paisagem política europeia nos últimos anos, habilmente utilizado pela forças nacionalistas e populistas para alimentar o medo dos cidadãos, apontando o dedo ao “outro” como sempre convém durante uma crise como aquela que a Europa viveu. Banalidades? Não. Porque nada está ainda resolvido e as condições para a construção de uma política europeia para o asilo e para a imigração estão tão ou mais longe do que no início da crise. Cavaram-se divisões, morreu a solidariedade entre os Estados-membros, com honrosas excepções. As soluções provisórias atingem o ponto de ruptura. Nos campos de refugiados da Grécia, as condições de vida começam a ser insustentáveis. Na Turquia, que a Europa “alugou” por três mil milhões de dólares para receber refugiados, o mesmo problema existe em dimensões ainda mais dramáticas. Estão longe — da preocupação dos governos e do olhar dos seus eleitores. Quem se admira, pois, com o sucesso de Viktor Orbán e do seu novo amigo Matteo Salvini, cuja estratégia é consolidar a sua recém-criada “frente” durante as eleições europeias. A entrada em força do Governo italiano do lado dos que defendem uma Europa fechada aos imigrantes e ao mundo é, como dizem os britânicos, um game changer.
2. Merkel viu a sua força política minada nas últimas eleições em resultado da sua política de abertura aos refugiados da Síria. A contestação da CSU, irmã gémea da CDU, liderada pelo seu ministro do Interior, à sua política de imigração quase deitou abaixo a “grande coligação”. Mas a vingança serve-se fria e já tem data marcada: a CSU, que sempre governou com maioria absoluta o rico estado da Baviera, vai perdê-la nas eleições e, dizem as sondagens, com uma queda eleitoral da ordem dos 10%. Quiseram fazer da imigração e dos refugiados a sua bandeira. Receberam Orbán como um amigo. Eleitoralmente, não lhes serviu de nada. O que não quer dizer que a Alemanha não tenha um enorme problema político com a extrema-direita, instalada no Bundestag e capaz de incendiar as ruas como aconteceu no estado da Saxónia (antiga RDA) nos últimos dias. Merkel não quer deixar à Alemanha este legado político.
3. Emmanuel Macron mantém-se fiel a tudo aquilo que defendeu na campanha eleitoral e, por isso mesmo, ocupa hoje o centro da “resistência” à ofensiva populista e nacionalista, depois de a ter derrotado brilhantemente na França. Orbán-Salvini declaram-no, não por acaso, o “líder” da Europa que rejeitam. Ele aceita o desafio. Não faz concessões como muitos dos seus pares europeus. Quer estender à Europa o desafio político que lhe deu a retumbante vitória nas eleições presidenciais e legislativas. A sua “revolução” colocava o combate político em novos termos: entre a “abertura” e o “fechamento”. A abertura à globalização, a abertura aos outros, a abertura ao que é novo, a partir da defesa dos valores que estão na base da construção europeia: da liberdade, da tolerância, da democracia e do mercado. Sem ilusões sobre o estado do mundo, mas ainda crente na capacidade europeia de não se render ao regresso da política de potência ou de se preparar para ela. Contrariando a tendência geral, na defesa de mais integração ao nível monetário, financeiro, económico, social e político. A sua visão só faz sentido à escala europeia. É este o seu combate nas eleições do próximo ano. Não está sozinho.
4. Pouco interessa se Manfred Weber, líder do Grupo do PPE no PE, diz que é o candidato do PPE à Comissão ou se tem o beneplácito de Merkel. Por uma razão simples: ninguém sabe qual vai ser a composição do próximo Parlamento Europeu, a não ser que as grandes famílias políticas tradicionais estão em perda acentuada (PPE, Socialistas e Democratas, Liberais) e que os populistas e nacionalistas vão ter um peso muito maior no hemiciclo de Estrasburgo. A Liga de Matteo Salvini pode vir a ser a base de uma nova formação “soberanista”, incluindo os partidos nacionalistas e populistas que abdiquem de “sinais exteriores” excessivos, da Frente Nacional aos populistas nórdicos, e que permitiriam ao seu aliado húngaro (talvez) encontrar o lugar que lhe convém fora do PPE — onde sabe que é, cada vez mais, um incómodo. Teria a utilidade de separar as águas. Levaria necessariamente a uma nova aliança das forças europeias democráticas e liberais que construíram a Europa e que têm muito mais em comum do que a velha dicotomia direita-esquerda. É aqui que tudo aquilo que Macron defende faz sentido e é aqui também que a candidatura de Weber, figura apagada e provinciana, deixa de fazer qualquer sentido. O presidente da Comissão terá de ser, provavelmente, uma figura de consenso entre os partidos europeus, de reconhecida experiência e de impolutas credenciais europeístas, que pode muito bem ser um alemão. Paris não se importa. Macron apenas veta um presidente alemão do BCE, porque atribuiu uma enorme importância ao cargo, depois de Mario Draghi ter salvado o euro. Merkel tem na manga o seu candidato preferido: Peter Altmaier, ministro da Economia e seu antigo chefe de gabinete.
Onde ficará o La République en Marche do Presidente francês? É a incógnita decisiva que falta clarificar. Os liberais queriam-no, mas não deve ser essa a sua intenção. Pode formar um grupo parlamentar autónomo com peso suficiente? Os Democratas italianos alinhariam, mas o seu resultado eleitoral é altamente duvidoso. O Ciudadanos espanhol é uma hipótese consistente. Há outros pequenos partidos centristas que facilmente se reivindicam das ideias de Macron, mas sem grande peso. Se o PPE não se depurar dos seus Orbán, o que farão os partidos de centro-direita mais ao centro? Os nórdicos? Ou até o PSD? É dar um passo demasiado grande? Provavelmente.
5. Na política nacional, a velha distinção entre esquerda e direita não desapareceu ou, pelo menos, não completamente. Questões como o combate às desigualdades e a reforma do Estado social continuam a alimentar ideias distintas e a fazer a diferença. Mas os fundamentos macroeconómicos são semelhantes, como se vê no nosso país. Foi um Governo classificado como o mais à esquerda da democracia constitucional que fez a maior correcção do défice da história recente, não por imposição de Bruxelas, mas porque, citando o primeiro-ministro, isso é fundamental para o próprio desempenho da economia, reduzindo o peso da dívida e libertando recursos necessários ao crescimento. Em Bruxelas, Portugal pesa do lado dos que não querem ver entraves ao investimento estrangeiro nem gostam de uma Europa demasiado “protectora” do seu mercado.
Não tenhamos dúvidas, o verdadeiro combate vai ser entre a abertura e o fechamento, entre nós e os outros ou nós contra os outros. Entre uma globalização regulada e o proteccionismo do salve-se quem for mais forte. Não através de míticos discursos relativistas que desvalorizam os valores universais que o Ocidente ainda encarna. Não sem levar em conta a vida dos cidadãos, que muitas vezes não é aquela que os discursos bem-pensantes ou politicamente correctos descrevem. Mas com tolerância, com humanidade, com soluções realistas, com mecanismos mais fortes de integração e, sobretudo, com solidariedade europeia. O combate está longe de estar ganho.