Tolentino Mendonça: "Papa é a referência de uma Igreja que quer purificar-se de crimes"
A procura da beleza deve, hoje, assumir as linguagens, formas e gramáticas da contemporaneidade, diz o novo responsável da Biblioteca Apostólica e do Arquivo do Vaticano, arcebispo José Tolentino Mendonça, que hoje toma posse do cargo.
O silêncio das bibliotecas outra coisa não é “do que um impressionante coral com milhões de vozes que atravessam os tempos, cuja audição nos avizinha do inesgotável e fascinante mistério da vida”, diz o novo arcebispo e responsável da Biblioteca e Arquivo da Santa Sé, cargos que assume este sábado, em cerimónia informal, no Vaticano, na véspera de receber, no festival do diário católico italiano Avvenire, o prémio "Uma vida por... paixão!"
Chegado a Roma, D. José Tolentino deparou-se com a tempestade à volta do Papa. Mas sobre o que se está a passar, o novo bibliotecário da Igreja Católica diz, nesta entrevista ao PÚBLICO, que “o conselho do Papa Francisco no regresso da viagem à Irlanda é de uma grande sabedoria” e que não é por acaso que “não só dentro da Igreja, mas tantos não-crentes manifestam o seu respeito e admiração por Bergoglio”.
Como acolheu esta escolha para dirigir a Biblioteca e o Arquivo Vaticano?
Para mim foi uma completa surpresa. Estava muito feliz e completamente identificado com o trabalho que desenvolvia em Portugal.
Conhecido o seu gosto pelo conhecimento do grande pensamento cristão, irá procurar na Biblioteca algum texto em especial?
Com todo o realismo, quero antes de tudo ocupar-me dos relatórios sobre o estado actual da Biblioteca e do Arquivo. São as minhas leituras prioritárias. Mas sim, como bibliotecário devo enamorar-me também desta espantosa biblioteca, o que não é difícil. E tenho uma lista mental infindável de tesouros que gostaria de encontrar no tempo: o celebérrimo Codex Vaticanus, do século IV, que contém o mais antigo texto completo da Bíblia em grego; os dois volumes da Bíblia de Gutenberg, que foi o primeiro livro impresso no Ocidente, segundo a técnica de impressão moderna; as Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha, que contém um dos primeiros tratados sobre como organizar uma biblioteca; a Commedia de Dante ilustrada por Sandro Botticeli; o Apocalipse de São João ilustrado por Albrecht Dürer...
Em entrevista à Ecclesia, afirmou que uma biblioteca é um lugar de cultura, pensamento, diálogos e encontros, “uma fronteira da ciência, onde pulsa o desejo de futuro” e uma “possibilidade de fazer coisas, de estabelecer novos nexos e de dar uma nova vida aos textos”. Como pensa concretizar essas perspectivas, conhecendo o seu gosto pelo diálogo cultural?
É curioso que o fundador da actual Biblioteca Vaticana, o Papa Nicolau V, já em meados do século XV, definia assim a sua finalidade: “para a comum utilidade dos homens de ciência”. E, ao contrário do que era habitual nas bibliotecas do tempo, que se especializavam sobretudo em teologia e em direito, ele sonhou uma biblioteca universal, segundo os critérios humanistas, aberta também à literatura profana e às ciências, como a astronomia, a medicina, a matemática.
Recordar de onde vimos ajuda-nos a perceber por onde temos de continuar. Uma das surpresas que tenho encontrado, desde os primeiros contactos com a equipa com quem aqui trabalho, é a sua atenção ao futuro e a vontade de reflectir o assunto.
Mesmo se muitos investigadores as frequentam, as duas instituições, Arquivo e Biblioteca, têm uma imagem de lugares quase inacessíveis, onde se guarda o passado e quase não se fala no presente. Colocar em diálogo o passado e o presente será uma preocupação?
Lugares inacessíveis, não. Especializados, sim. Mas são cerca de dois mil investigadores que anualmente ali trabalham. E chegam de todo o mundo. Além disso, o Arquivo Secreto e a Biblioteca Apostólica têm escolas abertas, e de alto nível, para a formação em biblioteconomia, paleografia, diplomática e arquivística. Têm laboratórios de restauro. Mantêm uma actividade editorial criteriosa inestimável. Promovem uma actividade expositiva e divulgativa. Têm acordos e parcerias com grandes universidades, dos Estados Unidos à Alemanha, de Itália ao Japão.
Há muita vida a acontecer diariamente, nestas salas e corredores. Veremos como continuar e intensificar a inscrição deste património na contemporaneidade.
Na ordenação episcopal, afirmou que não sente diferença entre uma biblioteca e um jardim, relacionando isso com o seu lema de bispo, “olhai os lírios do campo”... De que modo uma biblioteca pode ser um jardim? Ou o lugar para lembrar, como também disse, que “os farrapos de mendigos que interiormente nos vestem têm a beleza dos lírios”?
Digo muitas vezes que a minha primeira biblioteca foi a minha avó materna. A minha avó não sabia ler e a única palavra que, com imensa dificuldade, conseguia escrever era o seu próprio nome. Nada mais do que isso. Mas tinha dentro da cabeça um inteiro reportório do cancioneiro oral com os seus contos, os romances tradicionais, as múltiplas formas da lírica popular, que não se cansava de transmitir.
Com a minha avó analfabeta aprendi aquilo que depois os meus anos de estudo só confirmaram: que a palavra escrita é inseparável da voz humana. Que todos os textos do mundo têm dentro de si os vestígios de uma voz. Que a literatura outra coisa não é do que uma fantástica concha acústica, onde podemos reencontrar a interminável conversa que os seres humanos mantêm. Que o silêncio das bibliotecas outra coisa, na verdade, não é do que um impressionante coral com milhões de vozes que atravessam os tempos, cuja audição nos avizinha do inesgotável e fascinante mistério da vida...
A propósito dos paramentos que usou na ordenação, o padre Joaquim Félix recordou a afirmação que faz num dos seus livros: "É urgente que sintamos a necessidade de nos reconciliarmos com a Beleza". Ao mesmo tempo, ele conta como os paramentos foram desenhados em diálogo entre a tradição e a modernidade. Como podem uma biblioteca e um arquivo ser lugares da reconciliação com a beleza e de diálogo entre a tradição e a modernidade?
Aquela pergunta de Dostoievski, “haverá uma beleza que nos salve?”, diz muito sobre o ser humano. Somos seres famintos de beleza. Não conseguimos encontrar sentido na vida com os olhos colados aos sapatos. Precisamos de infinito, nem que seja de um fragmento de infinito. A história humana é também a história da procura da beleza. Jesus, quando desafiou os discípulos a olharem os lírios do campo, mostrou isso bem.
Ora, a procura da beleza continua na contemporaneidade, com novas linguagens, formas, gramáticas. É a mesma fome a inquietar o coração humano. A Igreja tem de reforçar o seu diálogo com as artes, o pensamento e a cultura contemporânea. Ela não é gestora de um passado remoto, descontinuado. Ela tem a missão de inscrever-se no presente, de uma forma serena e criativa.
É conhecida a sua proximidade em relação ao cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura. De que modo poderá trabalhar em proximidade e colaboração com ele?
O cardeal Gianfranco Ravasi tem feito um trabalho notabilíssimo no diálogo entre a fé e a cultura. A sua realização mais recente, e que está ainda patente, foi curar a participação da Santa Sé na Bienal de Arquitectura de Veneza, convidando um conjunto muito significativo de arquitectos para construir uma capela e com isso nos ajudarem a pensar o que pode ser o desenho do espaço sagrado na modernidade. O arquitecto português Souto Moura também participa.
Cito o exemplo desta realização para dizer quanto o cardeal Ravasi é uma fonte de inspiração. Certamente encontraremos formas de potenciar a colaboração entre o Conselho Pontifício da Cultura e a Biblioteca Apostólica, que têm tantas naturais afinidades.
Chega a Roma num momento complexo do pontificado do Papa Francisco, com algumas vozes a pedirem a demissão dele. Como olha para o que se passou nestes últimos dias?
O conselho do Papa Francisco no regresso da viagem à Irlanda é de uma grande sabedoria: cada um julgue os factos por si e faça a leitura que tem a fazer...
Uma coisa é certa: o Papa Francisco é o ponto de referência de uma Igreja que assume a necessidade de purificar-se de desvios, erros e de crimes passados e que transporta para o presente uma exigência de coerência evangélica. E ele é o primeiro a dar o exemplo. Não é por acaso que não só dentro da Igreja, mas tantos não-crentes manifestam o seu respeito e admiração por Bergoglio. Os seus actos falam e são uma rara âncora de esperança para o nosso tempo.