Um silvo ecoa no ar, o comboio dá uma ligeira sacudidela e as crianças, sofrendo com o calor, agitam-se e desviam, finalmente, os olhares dos telemóveis. Laura Roela, uma das guias turísticas, ergue o microfone e dá as boas-vindas aos turistas no momento em que uma brisa refrescante se insinua pela carruagem. Centro as minhas atenções no cimo da escada que nasce na plataforma e vejo afastar-se, sob um céu sem uma nuvem, Saúl Narbona, o coordenador do parque mineiro e geógrafo que me recebera poucos minutos antes do anúncio da primeira partida do comboio (três vezes durante o mês de Agosto).
- O ano passado batemos o recorde do número de visitantes no parque mineiro, com um total de 90 mil, dos quais 80% espanhóis.
Laura Roela prolonga um sorriso que ameaça eternizar-se até ao final da viagem. Os adultos retiram os telemóveis do bolso e começam a fotografar, as crianças parecem confusas perante uma panorâmica que nos transporta para um planeta do qual apenas conhecemos o nome.
- O rio Tinto, devido às suas características e cor, é único no mundo, garante, somente em castelhano, a simpática Laura Roela.
Assim é, de facto, e por isso a agência espacial norte-americana NASA e o Centro Espanhol de Astrobiologia focaram a sua atenção no rio para estudar as prováveis semelhanças entre estas condições ambientais e aquelas que caracterizam Marte.
O comboio, com as suas carruagens restauradas e devolvido a um tempo de antanho, move-se sem pressa de percorrer os 12 quilómetros recuperados para uso turístico, como quem deseja perpetuar um lugar de que pouco mais resta do que a memória.
Não é por acaso que o rio Tinto tem este nome e esta cor que nos remete para vinho ou sangue. Durante muitos anos admitiu-se a hipótese de as características do rio, com a sua coloração avermelhada, resultarem da contaminação da exploração mineira. Um grupo de cientistas fez um trabalho de investigação e, embora admitindo que a actividade teve algum impacto, chegou à conclusão que a composição do rio Tinto é essencialmente natural. Nas suas águas, recortadas pela moldura da janela do pequeno comboio que continua na sua marcha pausada, aqui e acolá também preenchida por pinheiros e eucaliptos, não vive um único peixe mas tão-só microorganismos conhecidos como quimiolitotrofos, que não carecem de matéria orgânica para sobreviver.
É complexa, sem dúvida, a química deste rio que atrai todos os olhares dos turistas sentados nas três carruagens do comboio. Desde logo, as suas águas caracterizam-se por um pH extremamente ácido e com um impressionante conteúdo de metais pesados, na sua maior parte ferro, mas também quantidades significativas de cobre, de cádmio, entre outros.
Melhor do que entender as suas características é sentir o seu pulsar e o comboio, na sua pausa rotineira antes do regresso, convida-me a fitar essas águas que parecem extraídas de um lagar em Rioja ou em Ribera del Duero.
A chegada dos britânicos
Diferentes culturas, em períodos distintos, exploraram esta área em busca de metais e de minerais, mas ninguém, entre todos eles nos últimos 5000 anos, com a astúcia dos romanos, com a sua tecnologia avançada para a época, ou, muitos anos mais tarde, os ingleses, dotados de uma indústria moderna que concedeu os momentos de maior esplendor a uma vila que excede em pouco, nos dias de hoje, os cinco mil habitantes, em contraste com os mais de dez mil que a povoavam, em finais do século XIX.
Por vezes, ao longo da viagem de comboio, o rio esconde-se. Como as palavras de Laura Roela. Nessa altura contemplo o caderno de apontamentos, recordando as frases de Saúl Narbona.
- O nosso plano passa por melhorar a oferta existente com novos conteúdos, ampliando os produtos turísticos e potenciando a marca ‘Ríotinto, Marte na Terra’.
No regresso, cabeceando um sono, volto a pousar, aqui e além, um olhar no rio Tinto, nessas tonalidades que o transformam, que o fazem sentir desejado. Logo depois, para afastar a preguiça, atiro de novo os olhos para as páginas onde se identifica a marca de Saúl Narbona, desta vez expressa num sentimento muito pessoal.
- É um lugar especial, diferente de tudo o que podemos ver na Andaluzia, com um rio único no mundo, estudado pela comunidade científica internacional. Uma paisagem que combina o verde dos bosques de pinheiros com o vermelho da terra mineira, transformada pelo homem ao longo de mais de cinco mil anos.
Mal a tarde se anuncia, com os raios de sol fustigando a terra e convidando todos a permanecer à sombra, franqueio as portas do museu mineiro Ernest Lluch, abrigado, ao fim de 20 anos de obras de uma restauração sublime, entre as paredes do antigo hospital britânico e palco de um regresso ao passado que permite ao viandante identificar-se com a exploração das minas na Idade do Bronze, 3000 anos antes do nascimento de Jesus Cristo. Segue-se o período tartesso, depois sinto-me transportado para a época romana, mais ainda quando percorro os 200 metros que reproduzem uma gruta desse império, chego à Idade Média em poucos minutos e, em menos ainda, abraço as histórias da exploração a cargo dos ingleses.
Corria o ano de 1873 quando um consórcio financeiro, com uma maioria de capital britânico, adquiriu as minas de Ríotinto, constituindo a Río Tinto Company Limited — e cuja presença, transformando tudo à sua volta, em termos urbanísticos, tecnológicos e sociais, se haveria de sentir até 1954, altura em que as minas voltaram para as mãos dos espanhóis.
Só agora me lembro de um cartaz, no regresso dessa viagem com tanta história, de comboio, anunciando que Ríotinto é o berço do futebol espanhol. A influência britânica expressava-se nas montanhas e nas terras de Ríotinto, fundia-se na cultura regional e alargava-se ao país, descobrindo o desporto inglês e, mais enraizado nos dias de hoje e já praticado entre os súbditos da coroa, o futebol — por alguma razão o Recreativo de Huelva é o clube mais antigo de Espanha e só não é da Península Ibérica porque já antes existia a Académica de Coimbra.
A Casa 21
Julgo que o termómetro marca uns 40 graus. Do parque de estacionamento mais próximo da Casa 21 do bairro da Bellavista, secção etnográfica do museu mineiro Ernest Lluch, não são mais de 70 metros, como indica a sinalização. Quando, em 1873, a direcção das minas fica a cargo de técnicos estrangeiros, na sua maioria britânicos, muitos destes ficaram alojados na antiga povoação de Ríotinto — e tantos entre eles contraíram matrimónio com senhoras espanholas. Uns anos mais tarde, em 1882, Charles Prebble, director-geral da Río Tinto Company Limited, decide levantar um bairro para acolher estes homens, numa suave colina, com uma panorâmica soberba sobre vales e planícies em redor.
Ninguém abre a boca de espanto se eu escrever, com base em documentos, que a primeira casa a ser construída estava destinada ao director-geral, seguindo-se uma fila de outras dez e dez mais em 1883, entre elas a Casa 21, onde agora me encontro para tentar perceber como viviam os ingleses por essa altura.
Nem sempre foi fácil a convivência com os espanhóis.
Em 1888, nos primeiros dias de Fevereiro, os mineiros iniciaram uma greve geral de inspiração anarquista, e uma manifestação, convocada e organizada pelas entidades camarárias de Zamalea la Real, exigindo a supressão das calcinações ao ar livre (proibidas uns dias mais tarde por decreto) e uma melhoria das condições de trabalho (os empregados trabalhavam de sol a sol, durante 12 horas, entre outras exigências difíceis de compreender na actual conjuntura), agitou por momentos a pacatez da aldeia de Ríotinto, muito por culpa de uma banda de música que acompanhava o protesto, assim como do ruído produzido por mulheres e crianças, familiares dos trabalhadores e elementos pacíficos num desfecho de todo inesperado — e turbulento.
O pior estava para vir.
Admite-se que os mineiros, incluindo crianças com não mais de dez anos, retiravam pirita das entranhas da terra para calcinarem em enormes pirâmides, extraindo o cobre num processo produtivo que nem todas as minas do Chile, em conjunto, eram capazes de igualar. Com este processo, desencadeavam nuvens de gases sulfurosos que não deixavam os habitantes respirar, que envenenavam o gado e reduziam a nada as colheitas tão aguardadas por uma população com grande vocação agrícola.
As negociações foram abortando e, de repente, as palavras foram substituídas pelo ruído produzido pelas balas desferidas pelo regimento de Pavia, provocando, como rezam as crónicas, meia centena de mortos, entre eles uma mulher com o seu filho nos braços.
Não há registos oficiais mas acredita-se, a julgar na tradição oral, que terão morrido duas centenas de pessoas neste massacre ocorrido na principal praça de Ríotinto nas noites de 4 e 5 de Fevereiro de 1888.
O comboio deixa-me ver, de quando em vez, até emitir um silvo que é sinónimo de descanso, as tonalidades do Ríotinto. Um outro comboio, conhecido como comboio da morte, terá transportado mais de 150 corpos em vagões descobertos puxados por uma locomotiva que as testemunhas desse tempo conheciam como La Maldita.
Se passar por Ríotinto, este episódio macabro da história das minas ser-lhe-á contado, por este ou por aquele, como o “ano dos tiros”. Mas pouco ou nada mudou para os mineiros nesse tempo.
Deixo a Casa 21 para trás mas não o calor que fustiga tudo à sua volta. Por momentos sinto inveja de quem goza dos prazeres de uma enorme piscina, com as suas águas cristalinas, situada mesmo em frente a esta réplica da vida britânica em Ríotinto num tempo tão remoto. De volta à A-461, a caminho de Huelva, desvio quando me surge a indicação de Berrocal, um povo com as suas casinhas brancas, com as suas ruas solitárias a esta hora, tão estreitas, antecedido de uma ponte, anunciando uma subida íngreme ao longo do asfalto que me mostra o Ríotinto uma vez mais. Até Niebla são menos de três dezenas de quilómetros, o castelo recorta-de contra o céu de um azul pálido e, mais para trás, ainda, estaciono o carro mesmo ao lado da ponte romana que cruza as margens do Tinto. Que permanece mágico.